O articulista do portal Brasil 247, Moisés Mendes, publicou, no último dia 26, um artigo intitulado O fim da coalizão amarrada com arame farpado, tratando da crise do governo — enfim reconhecida pela esquerda, embora com grande atraso. “Até o PSB vota contra o governo”, lamenta o articulista, que reconhece também um fenômeno que desde 2022 vem sendo alertado por este Diário, mas que só agora foi registrado pelo esquerdista: “o Congresso é dominado por dois terços de direita e extrema-direita, sem que se saiba o que pode ter restado do que era o centro”.
Apesar de registrar alguns fenômenos com quase três anos de atraso, o articulista expõe sua limitação justamente por não ter entendido que o campo batizado de “centro” pela esquerda pequeno-burguesa é também de direita — uma caracterização que só pode ser feita a partir de uma compreensão social dos fenômenos políticos, algo que visivelmente falta ao articulista, como fica evidente quando o autor diz que “o Supremo continuaria fazendo o que a política é incapaz de fazer”.
Ora, o que o Supremo está fazendo é travar uma luta contra o bolsonarismo — justamente o que a política faz. E, ao defendê-lo, Mendes não faz outra coisa além de aumentar a desmoralização do governo, responsável por essa situação. Isso é resultado do problema do isolamento institucional do governo, que Mendes identifica apenas parcialmente, sem, porém, entendê-lo — e, por isso mesmo, demonstra não ter a menor ideia de como superá-lo.
Pedindo desculpas ao leitor assíduo, que certamente já leu isso diversas vezes, lembraremos que a conjuntura de 2022 é muito diferente de como o mundo estava 20 anos antes, quando Lula chegou ao Palácio do Planalto pela primeira vez. Já na sua eleição era possível prever que seria um governo fraco do ponto de vista institucional, dependente da mobilização popular — sem a qual seria trucidado pela direita.
Essa direita, é preciso lembrar, está inserida dentro do próprio governo. Trata-se da Frente Ampla: o arranjo que levou Marina Silva ao Ministério do Meio Ambiente para impedir o País de explorar suas riquezas minerais; Fernando Haddad ao Ministério da Fazenda para garantir os interesses dos bancos na política econômica; além de Geraldo Alckmin e Simone Tebet. Três membros desse quarteto apoiaram abertamente o golpe de Estado de 2016, sendo a exceção o ministro Haddad, para quem a palavra “golpe é muito forte”.
Mendes, por sua vez, apresenta um enigmático “voltar a conversar com o povo poderia nos salvar, mas o povo do século 21 não quer saber das conversas do século 20”, que facilmente pode ser entendido como uma defesa velada do identitarismo.
Dando uma profundidade social ao debate — o que nem Mendes nem a esquerda pequeno-burguesa de conjunto lembram —, é que centro, direita e extrema-direita são todas expressões políticas de uma mesma classe: a burguesia. Para o leitor regular do Diário Causa Operária pode parecer repetitivo o que diremos, mas pediremos licença para repetir: em 2002, a cisão entre a ala nacionalista da burguesia e a ala imperialista fez com que os primeiros buscassem a esquerda para estancar a destruição que o imperialismo provocava com a política neoliberal.
As legendas dessa ala se reuniriam sob a sigla de “centro” e passariam a compor com o governo. Expressando exatamente esse fenômeno, um então obscuro parlamentar desse campo faria uma declaração bombástica, sugerindo fuzilar FHC pelos crimes do ex-presidente tucano, responsável por aplicar uma política neoliberal turbinada no País:
“Através do voto você não vai mudar nada nesse país, absolutamente nada. Só vai mudar, infelizmente, quando um dia nós partirmos para uma guerra civil aqui dentro. E fazer um trabalho que o regime militar não fez, matando uns 30 mil, começando pelo FHC.”
O autor dessa frase é Jair Bolsonaro, que declarou ainda ter votado em Lula em 2002 — o que não é nem um pouco surpreendente. A crise do neoliberalismo foi tão violenta que convulsionou quase todos os países da América Latina, com destaque para a Argentina (que, a certa altura, se tornou ingovernável) e a Venezuela, onde o chavismo triunfou eleitoralmente e, depois, derrotou uma tentativa de golpe de Estado.
Antes que um Hugo Chávez aparecesse no Brasil, o imperialismo cedeu os anéis para manter os dedos, permitindo a ascensão do primeiro governo Lula — tendo, porém, o cuidado de mantê-lo sob rédeas curtas. Como nem o imperialismo nem a burguesia nacional tinham alguém para governar o País na ocasião, os primeiros aceitaram Lula, ao passo que os segundos buscaram no líder petista uma força para impedir o neoliberalismo de transformar em pó esse setor.
Esse, contudo, era o cenário de 2002. Em 2022, uma outra situação está posta. Por um lado, o que resta da burguesia nacional tem no bolsonarismo uma expressão política forte o bastante para não precisar do PT — e nem se submeter totalmente ao imperialismo. Por outro, o imperialismo não está mais na defensiva, mas na ofensiva, o que faz da conjuntura algo completamente diferente.
Submetido à sua crise mais grave desde a Segunda Guerra Mundial, o imperialismo precisa destroçar completamente a burguesia brasileira — que oferece resistência ao programa neoliberal pleno, ainda que, na retórica, se apresente como guardiã intransigente do livre mercado. Bolsonaro, finalmente, fez privatizações criminosas, mas nem por acaso foi tão violento nesse campo quanto FHC — o que lhe rendeu críticas por parte de organizações imperialistas como o MBL.
Reconhecendo essa barreira representada pela base social do bolsonarismo, um dos principais órgãos de imprensa do imperialismo no País, o diário Estado de S. Paulo, caracterizou o ex-presidente como “uma escolha difícil”. Em outra frente desse antagonismo entre o imperialismo e o bolsonarismo, encontra-se justamente o STF — curiosamente apresentado por Mendes como uma instituição que vem fazendo “o que a política é incapaz de fazer”, o que já deveria desmascarar o fato óbvio de que o órgão está, na realidade, fazendo política.
Tentando analisar os fenômenos que se processam na política nacional, Mendes destaca que “direita e extrema-direita, as velhas e as novas, andavam de mãos dadas. Agora andam abraçadas”. Como fica, porém, o antagonismo entre o STF e o bolsonarismo nessa colocação? Trata-se de uma questão central da política nacional — mas que deixa aprendizes de feiticeiro como Mendes completamente desorientados.
A um observador atento, a atuação decisiva do STF para o golpe de 2016 e para a prisão de Lula deveria ser sintomática do alinhamento político do órgão com os responsáveis pelo golpe — o governo norte-americano, em primeiro lugar. O fato de o mesmo roteiro ser seguido em todo o subcontinente, sempre com o Judiciário como protagonista, deveria ser um alerta — mas a esquerda pequeno-burguesa continua incapaz de reconhecer quem realmente é o inimigo.