Um ano depois da maior enchente de sua história, o Rio Grande do Sul volta a conviver com inundações. Na quarta-feira 25, quando esta reportagem foi concluída, o número de cidades atingidas chegava a 146, segundo a Defesa Civil, e mais de 7 mil moradores ficaram desabrigados. No Cais Mauá, um dos pontos do Rio Guaíba, o nível da água chegou a 3 metros, a chamada cota de inundação. Em Porto Alegre, informou o Departamento Municipal de Água e Esgoto, das 14 comportas que deveriam proteger a capital, sete ainda precisam de reparos. A solução emergencial foi novamente improvisar um dique com sacos de areia e argila. Na Zona Norte, ruas viraram um lago urbano. Desta vez, o problema não foi a enchente, mas a incapacidade do sistema de drenagem, pois a manutenção é mais uma promessa de 2024 não cumprida.

O prefeito Sebastião Melo, como de praxe, terceirizou a responsabilidade. No segundo dia de chuva, garantiu que o risco de inundações estava restrito às ilhas. As comunidades ribeirinhas permanecem abandonadas. “Nada foi feito. Somos nós por nós. O Poder Público não fez nada para ajudar as ilhas”, afirmou o padre Rudimar Dal’Asta, pároco da Capela de Nossa Senhora da Boa Viagem, na Ilha da Pintada. Apenas dois equipamentos de alarme foram instalados, relata o padre, mas faltou treinar os operadores. “Servem mais para decoração”, reclama. Sobre a não utilização de 770 milhões de reais liberados pelo governo federal, ­Melo culpou a burocracia. “Tudo está andando, mas não sai do papel enquanto o projeto não for aprovado e licitado.”

Na Região Metropolitana, o cenário se repete. Dois dias de chuva bastaram para casas recém-reformadas voltarem a ser inundadas. Enquanto isso, além dos 14 bilhões de reais do Fundo do Plano Rio Grande, formado pela suspensão do pagamento da dívida do estado com a União até maio de 2027, outros 6,5 bilhões repassados pelo governo federal seguem parados nas contas do governo Eduardo Leite. Há exatos 60 dias CartaCapital publicou a reportagem “Cofre Cheio”, a respeito da falta de execução de obras de drenagem urbana para contenção de inundações na Região Metropolitana. A pergunta era: se as chuvas voltassem, os danos seriam os mesmos?  A resposta está a olhos vistos.

Leite anda, porém, mais preocupado com seu futuro eleitoral. Após trocar o morto-vivo PSDB pelo PSD de Gilberto Kassab, o governador tem dedicado boa parte do expediente para fortalecer a nova legenda no estado. Também intensificou a agenda de viagens pelo País na tentativa de consolidar seu nome entre os pré-candidatos de oposição ao presidente Lula na corrida eleitoral do próximo ano. No último dia 16, em Curitiba, durante evento promovido pela Câmara da Indústria da Construção Civil, o ex-tucano participou de um painel ao lado dos colegas Ratinho Jr., do Paraná, e Jorginho Mello, de Santa Catarina. No encontro, Mello fez referência ao movimento separatista “O Sul É o Meu País”, sugerindo a secessão dos estados da Região Sul. “Temos dois candidatos à Presidência da República aqui. Daqui a pouco, se o negócio não funcionar muito bem lá para cima, nós passamos uma trena para o lado de cá e fazemos ‘O Sul É o Nosso País’, né?” Leite sorriu e aplaudiu. Os governadores criticavam o que chamam de favoritismo do Nordeste nas ações da União. O gaúcho esqueceu que, no ano passado, o Rio Grande do Sul recebeu mais de 100 bilhões de reais em recursos federais para enfrentar a crise climática.

Quase 150 cidades foram atingidas até o momento

Na segunda-feira 23, enquanto a enchente piorava em seus domínios, Leite esteve em São Paulo para inaugurar um escritório da InvestRS, agência de desenvolvimento econômico. O custo inicial da empreitada foi estimado em 23,7 milhões de reais. O local, segundo o site oficial do governo, fica “próximo à Faria Lima”. Mas, na ânsia de transformar até a Marquês de Sapucaí em palanque, o governador colecionou um revés. Há poucos dias, Leite anunciou o apoio financeiro do governo gaúcho à ­Portela, escola de samba carioca que no próximo ano vai desfilar no Carnaval com o enredo “O Mistério do Príncipe do Bará – A Oração do Negrinho do Pastoreio e a Ressurreição de Sua Coroa Sob o Céu Aberto do Rio Grande”. O “investimento” gerou forte reação popular. Na terça-feira 24, por meio de um vídeo postado em seu Instagram, o governador recuou e garantiu que “não serão aportados recursos do governo na escola de samba Portela”. Aliás, nos quadrantes gaúchos, tudo se transformou em comitê eleitoral. Amiúde, em Porto Alegre, Leite frequenta bares onde canta samba, toca pandeiro e tamborim. No interior, participa de feiras, almoços e inaugurações oficiais, sempre acompanhado por cinegrafistas e assessores. Nessas ocasiões, prefere entoar músicas nativistas, mais afinadas ao gosto do público local.

“O que temos no Rio Grande do Sul é ausência de governo, paralisado diante de uma crise grave, dramática e previsível que se acentua a cada dia”, critica o deputado estadual Miguel Rossetto, do PT, ex-deputado federal e ex-ministro do Desenvolvimento Agrário e do Trabalho e Emprego nos governos Lula e Dilma Rousseff. A gestão de Leite, diz, é marcada por decisões tomadas de forma isolada, sem participação de lideranças políticas e da sociedade. “Não há um projeto coletivo, discutido com prefeitos ou com a população. Passado um ano das enchentes de 2024, o medo e a insegurança voltaram a dominar o cotidiano dos gaúchos.”

Rossetto acentua a falta de gestão pública e lembra que o estado recebeu cerca de 120 bilhões de reais em recursos federais. “Isso representa algo em torno de 17% do PIB estadual. Nunca o Rio Grande do Sul foi tão apoiado pela União como agora, no governo Lula.” Ainda assim, insiste, municípios da Região Metropolitana, como Canoas, São Leopoldo, Novo Hamburgo e Porto Alegre, foram obrigados a iniciar obras de recuperação de diques, barragens e casas de bombas com recursos próprios ou verbas federais. Para o parlamentar, o foco de Leite está em outro lugar. “O governador vive uma fantasia delirante. Prioriza seu projeto nacional, que é se candidatar à Presidência da República, enquanto o estado enfrenta um drama humanitário. Precisamos de um governo voltado à reconstrução do Rio Grande do Sul, não de um candidato em campanha antecipada, vendendo ilusões. A oposição de Leite ao governo federal é, no mínimo, uma irresponsabilidade política.” •

Publicado na edição n° 1368 de CartaCapital, em 02 de julho de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Tudo de novo’

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Last Update: 26/06/2025