A letalidade da Polícia Militar de São Paulo aumentou 61% em 2024, com 813 ocorrências registradas, ante 504 no ano anterior. O crescimento alarmante coincide com o desmonte, promovido pela gestão de Tarcísio de Freitas, de mecanismos de controle da atuação policial. Contrário ao uso de câmeras corporais nas fardas, o governador ignorou inúmeros estudos que atestam a efetividade do equipamento para tornar as abordagens mais seguras, tanto para os agentes quanto para os cidadãos, além de contribuir para o aprimoramento dos procedimentos operacionais. Somente em 2023, foram cortados perto de 35 milhões de reais que seriam destinados ao Programa Olho Vivo. Lamentavelmente, Tarcísio não é uma voz isolada. Por todo o País, sobram lideranças dispostas a enfraquecer essa política pública.
Em meados de junho, a Comissão de Segurança Pública da Câmara dos Deputados somou-se a esse grupo ao aprovar um Projeto de Lei que proíbe o uso das imagens capturadas por câmeras corporais em processos criminais contra policiais. O argumento é de que, pela legislação brasileira, ninguém é obrigado a produzir provas contra si mesmo. Especialistas alertam, porém, que esse princípio constitucional não se aplica a policiais no exercício de suas funções, uma vez que, ao vestir a farda, eles atuam como representantes do Estado, não como cidadãos comuns. De caráter terminativo, o PL 2339/24 pode ser debatido e votado apenas nas comissões permanentes, sem necessidade de passar pelo plenário. Agora, segue para a Comissão de Constituição e Justiça e, se aprovado, pode ser encaminhado diretamente à Comissão de Segurança Pública do Senado, presidida pelo senador Flávio Bolsonaro, outro entusiasta do fim das câmeras corporais nas fardas.
O autor do projeto é o deputado federal Capitão Augusto, do PL de São Paulo, um dos integrantes da chamada Bancada da Bala, grupo parlamentar que defende interesses corporativos de policiais e militares, o armamento da população civil e o endurecimento de penas para criminosos. Na justificativa da proposta, ele aponta uma “inversão de valores”, em que o bandido seria tratado como vítima e o policial como suspeito – até que se prove o contrário. “Um verdadeiro absurdo”, afirma.
Houve redução da letalidade policial com a adoção das bodycams, atestam numerosos estudos
Relator do projeto na Comissão de Segurança Pública, o deputado Coronel Ulysses, do União Brasil do Acre, propôs ampliar a lei – concebida originalmente para abranger apenas a Polícia Militar – a todos os agentes de segurança pública. Para o parlamentar, as imagens captadas pelas bodycams não devem ser utilizadas como provas, pois seriam obtidas sob coação. “A partir do momento em que é obrigatório o uso da câmera, o policial só a utiliza porque foi coagido”, argumenta. “Poderia ser uma adesão voluntária.”
Se o uso das câmeras corporais é obrigatório para policiais, deveria ser estendido a todo o funcionalismo público, defende o coronel. Caso contrário, trata-se apenas de “revanchismo” e “perseguição política” contra os policiais militares, com o objetivo de “inibir ações da polícia em detrimento de uma lei frouxa, leniente e a favor do criminoso”. Segundo o deputado, uma vez que todo servidor público é um representante do Estado, até mesmo o presidente Lula deveria utilizar o equipamento acoplado à roupa. Hábil nas comparações de alhos com bugalhos, ele insiste: “É presidente, mas também é servidor. Tem que ter transparência”. Quanto à votação do projeto na CCJ, o parlamentar não titubeia: “Vai passar, com certeza”.
Contrário à proposta, o deputado Orlando Silva, do PCdoB, explica que a Comissão de Constituição e Justiça é composta majoritariamente de parlamentares de direita, favoráveis ao projeto. Para ele, permitir o avanço da proposta seria “um incentivo à violência praticada por maus policiais”. O equipamento, na visão do parlamentar, é “um avanço civilizatório” que protege “os bons policiais e os cidadãos” e contribui “para a queda da letalidade policial”. Aprovar a lei seria, portanto, um retrocesso.

No Senado. A proposta deve passar por comissão presidida por Flávio Bolsonaro – Imagem: Geraldo Magela/Agência Senado
O colega Alencar Santana, do PT, concorda que o cenário é desfavorável, mas pondera que ainda cabe recurso para impedir uma tramitação acelerada, restrita às comissões. “Vamos trabalhar pela rejeição do projeto na CCJ, mas, se for aprovado, vamos entrar com recurso e levar ao plenário”, diz. Segundo ele, o campo progressista tem votos suficientes para isso. A continuidade da discussão depende agora da nomeação do relator. “Provavelmente, será alguém da Bancada da Bala”, lamenta Santana.
O coordenador de projetos do Instituto Sou da Paz, Rafael Rocha, acompanha de perto o debate sobre mecanismos de monitoramento dos policiais e garante: “Não há dúvida sobre a efetividade do uso de câmeras corporais, as abordagens se tornaram mais seguras para toda a sociedade”. Apesar disso, existem inúmeras tentativas de enfraquecer essa política, destaca. “Essa lei não está amparada em dados ou pesquisas, parece muito mais para mobilizar as bases da extrema-direita, os bolsonaristas.”
Trata-se de “mais um projeto voltado a impulsionar o imaginário do policial perseguido, oprimido, um herói que precisa lutar contra todo um sistema e não tem amparo do Judiciário nem dos direitos humanos”, acrescenta Rocha. Ou seja, uma narrativa repetida à exaustão pelos setores da extrema-direita para alimentar as redes sociais. “Não faltam policiais influencers, youtubers, que falam absurdos, como a história de comemorar quando a polícia ‘cancela um CPF’, ou seja, mata um cidadão.” Se o objetivo fosse, de fato, proteger os agentes policiais, por que não propor iniciativas para a promoção da saúde mental, sugere. “Hoje, os PMs morrem muito mais vitimados por suicídio e acidente de viatura do que em confrontos.”
Tarcísio de Freitas comprou câmeras que podem ser desligadas pelo próprio policial
Atualmente, as câmeras corporais são utilizadas por policiais militares em Minas Gerais, Pará, Paraná, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Roraima, Rondônia, São Paulo e Santa Catarina. Diversos outros estados estão em fase de implementação. Na maior parte deles, as câmeras são de gravação ininterrupta, ou seja, registram toda a rotina do agente. Em São Paulo, Tarcísio de Freitas decidiu “inovar”, com a aquisição de equipamentos que podem ser ligados e desligados pelo próprio policial. Para Rocha, essa nova funcionalidade vai diminuir a efetividade da proposta.
A advogada Carolina Diniz, coordenadora do programa de enfrentamento à violência institucional da ONG Conectas Direitos Humanos, considera o Projeto de Lei “completamente inoportuno e inconstitucional”. O preceito de não produzir provas contra si, principal argumento dos defensores, não se aplica ao policial, porque ele é “um agente público, representante do Estado e do monopólio do uso da força, sobre quem recai a obrigação do Poder Público de controlar o uso dessa força”.
Diniz recorda ainda que o Supremo Tribunal Federal “já decidiu que não pode haver retrocesso nessa política pública”. Embora a proposta não interfira diretamente no uso das bodycams, “vai enfraquecer o poder desses equipamentos no controle da letalidade policial”, diz. “Se as imagens não puderem ser usadas como provas, que elementos poderão ter esse fim?”
Para a especialista, a proposta parece “mais uma cartada da Bancada da Bala, uma política de retórica que implica o descontrole da polícia”. E serve para sinalizar “que a polícia tem um salvo-conduto para definir quem morre e quem vive no País”. No entanto, não vê chances de esse projeto prosperar. Caso seja aprovado no Congresso, poderá sofrer controle de constitucionalidade pelo STF. É importante, no entanto, que esse controle ocorresse já na Câmara, no Senado ou com o veto do presidente da República. “Uma lei dessas coloca a vida da população em risco.” •
Publicado na edição n° 1368 de CartaCapital, em 02 de julho de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Ode à impunidade ‘