No início de junho, Ricardo Faria, conhecido como “Rei do Ovo” e estreante na lista de bilionários da revista Forbes neste ano, afirmou à Folha de S.Paulo que era um “desastre” contratar profissionais no Brasil. “As pessoas estão viciadas no Bolsa Família”, lamuriou-se o empresário, maior acionista da holding Global Eggs, com sede em Luxemburgo, que produz 13 bilhões de ovos por ano. Os dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) contradizem, porém, o falacioso discurso reproduzido por Faria. Ao contrário do que setores abastados da sociedade insistem em afirmar, os assistidos pelo programa não se acomodam com o benefício nem fogem do batente. Mais de 98% dos empregos formais gerados em 2024 foram ocupados por trabalhadores inscritos no Cadastro Único (CadÚnico) do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), dos quais 75% recebiam o Bolsa Família.

De acordo com o Caged, das 1,69 milhão de vagas com carteira assinada criadas no ano passado, 1,27 milhão foram preenchidas por beneficiários do Bolsa Família e outras 395 mil por pessoas pertencentes ao CadÚnico que não recebiam o benefício. Os dados revelam um aumento de 16,5% em relação a 2023, quando 74% das 1,4 milhão de vagas oferecidas foram ocupadas por trabalhadores vinculados ao CadÚnico, sendo 53% deles assistidos pelo programa.

“Essa história de dizer que no Bolsa Família ninguém quer trabalhar é uma grande falácia. Ninguém quer passar a vida toda dependendo do governo. As pessoas só querem uma oportunidade para sair da condição de pobreza e de extrema pobreza, elas querem ter dignidade”, afirma Luiz Carlos Farias, secretário de Inclusão Socioeconômica do MDS. Ele lembra o grande contingente de trabalhadores ativos dentro do ­CadÚnico, potenciais candidatos a uma vaga de emprego. Dos 93 milhões de cadastrados, 57,5 milhões têm idades entre 16 e 64 anos, prontos, em tese, para ingressar no mercado de trabalho. “Temos hoje no ­CadÚnico 2,9 milhões de pessoas de nível superior e 19 milhões com nível médio completo. Ou seja, são pessoas qualificadas que só precisam de uma oportunidade”, acrescenta o secretário.

Doutor em Economia Social e do Trabalho e professor da Unicamp, o economista José Dari Krein lembra que as pessoas buscam melhorar a sua condição de vida e o trabalho é um dos caminhos. “Essa história de que o Bolsa Família substitui emprego não faz nenhum sentido e os dados mostram isso. O problema é que boa parte das vagas é de baixa qualidade ou de baixa remuneração. Mas, sem dúvida, a política de transferência de renda ajudou a eliminar empregos extremamente precários ou serviçais”, analisa o pesquisador. “Agora, o empregador precisa oferecer um emprego decente, que traga benefício ao trabalhador. Quando o indivíduo deixa a miséria absoluta, ele não aceita mais qualquer condição imposta pelo patrão. Nesse sentido, o Bolsa Família ajuda a organizar um pouco melhor o mercado de trabalho.”

Mais de 98% dos contratados estão inscritos no CadÚnico, segundo dados do Caged

Sobre as funções de baixa qualidade exercidas pelas pessoas inscritas no CadÚnico e assistidas pelo Bolsa Família, Farias ressalta a existência de benefícios indiretos que vão além do salário. “Não se trata de subemprego. As pessoas veem só o salário mínimo, puro, sem mais nenhum benefício. Mas grande parte das empresas oferece FGTS, planos de saúde e odontológico, o que torna o emprego mais atrativo. Esse trabalho inicial é apenas a porta de entrada, pois algumas empresas dispõem de plano de carreira. Temos casos de pessoas contratadas com um salário mínimo e hoje estão ganhando muito mais”, diz, citando ainda o programa Acredita no Primeiro Passo, criado pelo governo federal no fim do ano passado para atender pessoas vinculadas ao ­CadÚnico, com cursos de qualificação profissional, oportunidades de emprego e apoio ao empreendedorismo, além de direcionar essas pessoas para ter acesso ao crédito facilitado. Fazem parte da parceria o Banco do Nordeste e o Banco do Brasil, que oferecem juros mais baixos ao empreendedor do CadÚnico.

Segundo o MDS, 56 milhões de brasileiros recebem o Bolsa Família, cujo valor médio é de 660 reais, um pouco acima do valor-base de 600 reais, devido aos adicionais oferecidos pelo programa. As famílias que têm crianças de até 6 anos de idade recebem 150 reais por filho. Há ainda um adicional de 50 reais para cada integrante do núcleo familiar entre 7 e 17 anos, mesmo valor repassado a gestantes. Para ter direito ao benefício, a pessoa precisa ter uma renda familiar per capita de 218 reais. Pelas atuais regras, se o beneficiário entrar no mercado de trabalho formal, continua recebendo os 50% do Bolsa Família durante dois anos, regra que passará por um ajuste no próximo mês.

A partir de julho, a chamada Regra de Proteção será reduzida a um ano. Depois desse prazo, caso o beneficiário do Bolsa Família se mantenha empregado e com renda per capita superior a 218 reais, ele deixará de receber o benefício, mas continuará vinculado ao CadÚnico. “Antes, se o assistido arrumasse um emprego com carteira assinada, já perdia o direito ao Bolsa Família. Hoje, ele não só continua recebendo como também permanece no CadÚnico, o que vai facilitar o seu retorno ao Bolsa Família se sua renda voltar a cair”, diz Farias.

“Nosso mercado de trabalho é, historicamente, pouco estruturado, com ocupações muito ruins, alta informalidade, salários muito baixos, rotatividade, empregos que não têm perspectiva de avanço profissional nem possibilidade de mobilidade social”, observa Krein. “Dentro desse contexto, é fundamental você continuar tendo o Bolsa Família aliado com o crescimento da economia, o que pode contribuir para melhorar a organização do mercado de trabalho.” •

Publicado na edição n° 1368 de CartaCapital, em 02 de julho de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Mito desfeito’

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Last Update: 26/06/2025