“Aquele que prevê o futuro mente, mesmo quando diz a verdade.”
(Provérbio árabe)
Os últimos desdobramentos da crise instaurada no Oriente Médio, desde os ataques do Hamas no 7 de outubro de 2023 e do início do genocídio perpetrado pelos israelenses na Faixa de Gaza, deixaram o mundo em alerta para um possível confronto nuclear entre Irã, de um lado, e Israel e Estados Unidos, do outro. A rapidez com que os acontecimentos se desenrolam e as informações nebulosas a respeito das motivações e interesses dos principais atores envolvidos nos conflitos desafiaram até mesmo os analistas mais experientes a fornecer explicações precisas e projetar possíveis cenários dessa desordem regional.
Os mísseis lançados por Teerã à base militar estadunidense no Catar, como resposta aos bombardeios realizados pelos EUA às instalações nucleares iranianas, deu a impressão, nas primeiras horas, de um recrudescimento do conflito armado, com possível sinalização para o fechamento do Estreito de Ormuz. Mas, poucas horas depois, Trump anunciava em suas redes sociais um acordo de cessar-fogo entre Israel e Irã.
Em menos de 24 horas, esses episódios revelaram, aparentemente, a imprevisibilidade das lideranças envolvidas e o nível de fragmentação da política externa norte-americana, marcada por divisões internas no Partido Republicano e na própria base trumpista, em especial no movimento do Make America Great Again (MAGA).
A versão de uma “ameaça nuclear iraniana” foi reciclada para justificar ataques preventivos de Israel ao Irã, ecoando o mesmo pretexto utilizado pelos EUA, em 2003, para invadir o Iraque sob a alegação, desmentida, de que Saddam Hussein desenvolvia armas de destruição em massa. Contudo, apesar dos ataques israelenses e estadunidenses, os iranianos mostraram certa resiliência. Diferentemente do Iraque de 2003, o Irã é um país com forte sentimento de unidade nacional e, apesar de mostrar fragilidade no sistema de defesa, foi capaz de demonstrar capacidade ofensiva, atingindo significativamente as cidades de Tel-Aviv, Haifa e Jerusalém. Pela primeira vez foi exposta a vulnerabilidade do Domo de Ferro israelense.
As próprias agências de inteligência dos EUA avaliaram que as instalações nucleares do Irã não foram atingidas a ponto de se tornarem inoperantes, como Trump alardeou a fim de justificar a não continuidade dos ataques. De todo modo, como decorrência dos ataques a Gaza, Israel atingiu duramente vários dos aliados iranianos do chamado Eixo de Resistência (Hezbollah e Hamas foram os mais prejudicados), e a queda de Bashar al-Assad na Síria, em dezembro de 2024, intensificou o isolamento militar do regime iraniano, que perdeu um dos principais elementos de sua estratégia de dissuasão utilizada há décadas.
Há certa insatisfação no país com a postura no conflito da Rússia e da China, aliados poderosos
Gostaríamos de destacar o papel que caberá às monarquias do Golfo e, em particular, o Catar nesse momento de grande instabilidade no Oriente Médio. O ataque do Irã ao Catar foi muito mais simbólico e, por paradoxal que possa parecer, deu-se, justamente, por causa do bom relacionamento que ambos os países mantêm há muito tempo. A diplomacia do Catar é sui generis: apesar de abrigar bases militares norte-americanas, mantém boas relações com o Hamas e o Irã e goza de grande influência nos EUA, principalmente sob o governo Trump.
O Catar e as outras nações do Golfo observavam o desenrolar da guerra entre Israel e Irã extremamente preocupados com a escalada das ações militares que pudesse prejudicar a fonte principal de seus recursos estratégicos como gás e petróleo. Essas ações permitem que possamos fazer fortes especulações sobre a possibilidade de os iranianos buscarem maior reaproximação com os vizinhos árabes do Golfo, em vez de continuar apostando exclusivamente no apoio da China e da Rússia, grandes potências que não se envolveram direta ou indiretamente na guerra em Gaza, em particular, e nas tensões no Oriente Médio, em geral.
Embora a China seja a responsável pela compra de 90% do petróleo exportado pelo Irã, garantindo a própria sobrevivência econômica do país persa, essa relação não se traduziu, e são poucas as chances de se traduzir, em apoio militar e político.
Em entrevista a The Wall Street Journal, Tino Sanandaji, pesquisador sueco-iraniano da Stockholm School of Economics, mencionou queixas comuns no Irã de que Rússia e China, “em vez de serem verdadeiras amigas, exploram o isolamento do Irã para obter recursos naturais baratos, enquanto vendem equipamentos militares de segunda categoria a preços inflacionados, às vezes nem mesmo entregando o equipamento prometido”. Isso pode indicar que, a partir de agora, não será apenas uma queixa, mas o regime político iraniano, muito provavelmente, adotará novas estratégias para a sobrevivência de seu projeto político.
Além do Catar, os Emirados Árabes Unidos são um dos maiores parceiros comerciais do Irã, oferecendo possibilidades de conexões na economia global, uma vez que o país enfrenta pesadas sanções ocidentais há muito tempo.
Enquanto isso, o genocídio em Gaza prossegue sem alterar seu curso. A única organização autorizada por Israel a operar na região, a Gaza Humanitarian Foundation (GHF), é financiada pelos EUA e foi denunciada pela Anistia Internacional por diversas violações de direitos humanos. Com o cessar-fogo entre Israel e Irã, o genocídio de palestinos volta a capturar a atenção da comunidade internacional, mas sem nenhum sinal de qualquer tipo de ação mais concreta. De todo modo, voltou a circular nos meios diplomáticos que esse momento de suspensão de hostilidades, ainda que frágil, cria uma oportunidade para avançar nas negociações de trégua entre Israel e o Hamas em Gaza, haja vista a dissonância temporária entre Trump e Israel. •
*Reginaldo Nasser é professor de Relações Internacionais da PUC–SP, pesquisador no Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT–Ineu) e coordenador do Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais (Geci) da PUC–SP; Isabela Agostinelli é professora de Relações Internacionais na PUC–SP e Fecap, pesquisadora do INCT–Ineu e do Geci-PUC–SP; Shajar Goldwaser é mestrando em Relações Internacionais no Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp, PUC–SP) e pesquisador do INCT–Ineu.
Publicado na edição n° 1368 de CartaCapital, em 02 de julho de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O amigo do lado’