Série Piauí Cultura Regional (22)

Dona Helena Ferreira: O Riso Contagiante da Lezeira

por Eduardo Pontin

A comunidade da Lezeira está triste. Aos 86 anos, partiu para o plano espiritual Dona Helena Ferreira (Helena Ferreira de Figueiredo, 25/2/1939-25/06/2025), cantadeira afamada da região de Floresta do Piauí e Santa Cruz. Dona Helena participou de rodas de Lezeira históricas que ficaram registradas apenas na memória afetiva de quem as brincou em noites de lua clara no sertão piauiense. A cantadeira era do tempo em que a Lezeira era a principal diversão dos interiores do Vale do Canindé, quando para se iniciar uma grande roda não era preciso combinar com ninguém, bastava a vontade e a disposição dos vizinhos para brincar até a barra do dia apontar.

O gosto pela Lezeira vinha de família. Um de seus irmãos mais velhos, Chiquim Ferreira, de 88 anos, é um dos maiores cantadores de Lezeira da atualidade, sendo reconhecido pelo Governo do Estado como Patrimônio Vivo da Cultura do Piauí.

Irmãos bons de Lezeira: Chiquim e Helena Ferreira | Foto: Francisca Sousa

A Lezeira é uma expressão cultural na qual a mulher tem o mesmo protagonismo que o homem. Nesta brincadeira, embora todos participem dançando e entoando em coro refrões ou respostas curtas, o protagonismo fica por conta do cantador e da cantadeira, responsáveis por sustentar a roda sapecando quadras de versos que são aprendidas de geração em geração. Dona Helena foi uma dessas cantadeiras e sua presença era marcante, sendo uma das damas que mais brilhavam nas rodas de Lezeira, com seu timbre de voz entre o agudo e o grave, seu canto decidido e seu jeito divertido de ser.

Helena Ferreira era a alegria em pessoa. Por isso, nas rodas de Lezeira, preferia cantar sempre versos mais acanaiados, que botavam o povo para se rir. Como:

Na biqueira dessa casa
Corre água sem chuvê
S’eu morasse nessa casa
Eu engordava sem cumê

ou

Nunca vi mamona grande
Botá cacho na raiz
Nunca vi rapaz solteiro
Tê palavra no que diz

 e

Em cima daquela serra
Tem as moça de cocó
Uma fina, a outra grossa
E a outra é cobra de cipó

Para a composição do livro “Vamô Vadiá Nesta Lezeira”, Dona Helena contribuiu com cerca de 140 versos, transmitindo mais de 35 quadras. Helena Ferreira era fiel representante da tradição da poesia oral brasileira. Prova disso é que entoava versos semelhantes aos que o etnógrafo Sylvio Romero (1851-1914) documentou no século 19, em 1876:

Dentro de meu peito tem
Duas tesouras sem eixo;
Inda me vendo em desprezo,
Meu amor, eu não te deixo
(Sílvio Romero, SE, 1876)

Aqui no meu peito eu tenho
Duas navalha de ouro
Uma de cortá ciúme
Outra de cortá o namoro
(Helena Ferreira, Floresta do Piauí, 2020)

O grande poeta Da Costa e Silva (1885-1950) registrou quadra em 1910 que Dona Helena Ferreira prosseguia cantando 110 anos depois, em 2020:

Mandei fazer um relógio
Da casca do caranguejo
Para contar os minutos
Das horas que não te vejo
(Da Costa e Silva, Piauí, 1910)

Quero vê o relógio
Do casco do caranguejo
Pr’eu mata minha saudade
No dia qu’eu num lhe vejo
(Helena Ferreira, Floresta do Piauí, 2020)

A cantadeira era tão danada que até em rodas de desafio entrava, enfrentando cantadores com versos que comprovavam que ela não tinha medo de homem nenhum:

Em cima daquela serra
Tem um sino sem badalo
Quem ensinô tu canta
Foi o finado meu cavalo

e

Em cima daquela serra
Tem um sino sem trumento
Quem te ensinô tu cantá
Foi o finado meu jumento

Helena Ferreira: Protofeminista nas rodas de Lezeira | Foto: Francisca Sousa

Muito antes do feminismo estar na pauta do dia, Dona Helena já se posicionava firmemente nas rodas de Lezeira. Ela era das poucas cantadeiras que entoavam versos sempre a partir da visão da mulher, mesmo que originalmente aprendesse esses versos segundo a visão do homem. Vejam:

Quero bem a bananeira
Da raiz até o mei
Quero bem esses menino
Da bermuda no joei

e

Quero bem a bananeira
Da raiz até o cacho
Quero bem esses mininu
De 18 anô abaixo

Dona Helena carinhosamente mantinha uma tradição bem característica da Lezeira, que é a de cantar versos em homenagem a alguma pessoa específica. E não havia roda de Lezeira para Dona Helena estar que ela não homenageasse seu marido, Inácio de Simão, o maior vaqueiro e aboiador da região vivo, hoje perto de inteirar 97 anos. Seu Inácio não brincava, mas gostava de ver Helena brincar e se sentia prestigiado quando escutava os versos:

Quem é aquele que lai vem
Em seu cavalo andadô
Eu conheço que é Inácio
Chapéu fino, avoadô

e

E quem é aquele que lai vem
Pelo camin do céu
É Inácio de Simão
E a copa do chapéu

Por todo o seu empenho em prol da Lezeira, em 2021 recebeu reconhecimento do poder público municipal, com diploma de Mestra Imortal da Academia Florestense de Cultura Popular.

Dona Helena foi diplomada como Imortal

Dona Helena cumpria uma função muito importante nas rodas de Lezeira, que é a de traduzir as quadras de versos para quem está presente a brincadeira. Para isso, a cantadeira desfilava interjeições sonoras repletas de piauiensidade logo após o término do quarto pé, como “Ihhhhhh!”, “Hhhheeeei!”, “Eitaaaa!”, atuando como um termômetro da alegria reinante na brincadeira. Quando a interjeição não dava conta, Dona Helena dizia algum comentário espirituoso e logo depois se espalhava de rir. Como quando Gabiru de Floresta cantou:

Eu aplantei e sameei
Carrapicho na estrada
E a coisa do meu abuso
É moça feia requebrada

E Dona Helena arrematou: “É coisa feia de se vê mesmo!”, se acabando de dar risada, divertindo quem presenciava aquela cena em que todos se riam. Esse gesto aparentemente simples não é realizado por qualquer brincante, pois requer um sentimento de pertencimento muito grande. Além disso, a presença de uma pessoa como Dona Helena faz com que a alegria da Lezeira se mantenha do começo ao fim, já que o riso é constantemente reforçado. Quem não entendia a piada dita pelo cantador, se ria com Dona Helena explicando em forma de interjeição, de riso ou de comentário. Era fabuloso participar de uma noite de Lezeira com Dona Helena!

Mesmo de bengala, Dona Helena não perdia uma Lezeira | Foto: Francisca Sousa

Até pouco tempo atrás, Dona Helena declarava o seu amor pela Lezeira de forma contagiante para quem passasse em frente ao alpendre de sua casa. Com o livro “Vamô Vadiá Nesta Lezeira” em mãos, admirava as suas fotos, as de seus parentes, amigos e vizinhos, recontava as histórias que lia e, por fim, arrochava a goela no mundo entoando cantigas desta manifestação de seus tempos de moçotinha que até o findar de seus dias fez parte de sua vida.

Faça a sua viagem em paz, Dona Helena! aqui você cumpriu sua missão, divertindo muita gente com sua alegria de menina e seu jeito extrovertido que a todos encantava.

Dona Helena Ferreira: cantadeira fina de Lezeira | Foto: Francisca Sousa

Eduardo Pontin é filósofo e há mais de 10 anos desenvolve estudos e pesquisas de campo no universo do samba e da cultura popular brasileira. Produtor Cultural, vem trabalhando no processo de patrimonialização imaterial da Dança da Lezeira do Piauí, tendo atuado junto ao IPHAN para que esta expressão seja considerada Patrimônio Cultural Brasileiro. Recebeu 1ª Menção Honrosa no Prêmio Nacional Sílvio Romero de Monografias sobre Folclore e Cultura Popular 2022, com o livro “Lezô, Lezá, Vamô Vadiá, Nesta Lezeira – Ancestralidade e Simbolismo na Dança da Lezeira do Sertão do Piauí”.

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Last Update: 26/06/2025