O dono da Dama do Cabaré (2)

por Walnice Nogueira Galvão

Vem ao caso apresentar aqui um panorama, para examinar esse conhecido ponto de vista masculino sobre as mulheres: o rico filão da música popular que é o da “dor-de-cotovelo”. Podemos pedir ajuda a Copacabana -a trajetória do samba-canção (1929-1058, de Zuza Homem de Mello. O livro analisa muito bem não só o contexto histórico em que surgiu e prosperou o samba- canção, mas também as biografias de seus luminares, como Ary Barroso, Antonio Maria, Nora Ney, Linda Batista, Elizeth Cardoso, Dolores Duran, Dick Farney, Tito Madi, Lúcio Alves, Dalva de Oliveira, Maysa. E sua brilhante herdeira, Nana Caymmi. Entre eles, em lugar de honra, nosso Lupicínio. E ainda mostra como o samba-canção terminaria por servir de  humus fertilizador à bossa-nova.

Esse filão assume a aparência de algo razoável, até racional, quais sejam as tensões entre o lar e a boemia  – problema grandioso para o homem, naturalmente. Mas é só escavarmos um pouco que, sob aquele verniz destinado a desencaminhar as críticas, logo se revela um tremendo machismo. Pois se fala em lar e boemia, como prerrogativas do macho, o que logo aparece é a hostilidade à mulher, mal disfarçada, e um patriarcalismo moralista de brutalidade sem limites. No universo da vida real, não podemos deixar de nos regozijar porque a aberração constituída pelo princípio de “Legítima defesa da honra”, essa contribuição do Brasil à civilização, acaba de caducar, após décadas de vigência.

Tipicamente masculinas, estas canções postulam uma contradição entre o lar e a vida na boemia, mostrando posições muito conservadoras – aliás, a nota dominante nestes sambas em que a “dor-de-cotovelo”  brada mais alto. Dos mais explícitos é Brasa, de Lupicínio Rodrigues, que atribui toda a culpa à esposa briguenta e intratável, o marido lhe diz sem rodeios que se ela amansasse ele nem sequer sairia de casa. E a compara às “mulheres da rua”, que sabem melhor agradar – razão suficiente para justificar as noites passadas na farra.

Não menos machista é A volta do boêmio, de Adelino Moreira, que sabe modular as sutilezas do tema da “volta”, que, a exemplo de todos esses autores, Lupicínio também burilou.  Pois há mais de uma nesse samba, e com sentidos diferentes. O boêmio abandonou a boemia e escolheu o lar. Mas hoje voltou à boemia porque a mulher lhe deu permissão. E aí vem a chave de ouro: ela declara com orgulho que é a segunda em seus afetos, logo depois da boemia, e por isso está segura de sua volta.

Valdick Soriano fica aqui representado por esse primor que é Eu não sou cachorro não, verso genial que já diz tudo. Mas no corpo da canção deixa a situação ainda mais clara: “… amar sendo enganado” , “amar sendo humilhado”. É instrutivo assistir o documentário que Patrícia Pilar filmou sobre o compositor intitulado Sempre no meu coração.

O inigualável Noel Rosa era chegado às damas da noite em sua vida de boêmio, pois quase todo o seu trabalho era noturno, tocando violão e cantando nos bares e nos cabarés. Dizem que A dama do cabaré  é uma muito concreta Ceci, de uma casa na Lapa, com quem ele manteve um turbulento romance de vários anos. Não falta o toque de humor típico do autor.

O grande letrista parnasiano Orestes Barbosa, autor de Chão de estrelas, em A mulher que ficou na taça  faz das suas mais uma vez, ao descrever a visão do homem que busca consolo na bebida pela rejeição que sofreu. Embora cercado por outras mulheres, ele só quer aquela, que ele “vê” materializada dentro da taça de bebida e que o incita a beber ainda mais.

Se você jurar, de Ismael Silva, apimenta com uma muito necessária nota de humor todo esse dramalhão machista da “dor de cotovelo”. Só com muitas garantias da amada, e ainda assim no modo dubidativo  (Se…), o narrador poderia se regenerar, porque, do contrário, diz ele, “a orgia  assim não vou deixar”.

Em Trem das onze, de Adoniran Barbosa, subjaz ao casal um surpreendente triângulo, introduzindo um elemento edipiano na relação. O narrador, morador do subúrbio, desculpa-se por ser obrigado a alcançar o último trem, pois sua mãe não dorme enquanto ele não chega – ele, o filho único.

Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita da FFLCH-USP

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Last Update: 26/06/2025