O STF está em via de bater o martelo sobre a inconstitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet, o que, ato contínuo, transferiria aos donos das big techs a tarefa de controlar todo o conteúdo publicado nas plataformas. Passaria a vigorar um sistema pelo qual as empresas recebem de qualquer pessoa (ou lobby) uma denúncia de conteúdo impróprio, ofensivo, preconceituoso, criminoso – seja lá o que for – e as plataformas têm de providenciar sua retirada sem decisão judicial. Grosso modo, a Justiça praticamente obriga as empresas a censurar os usuários, sob pena de elas mesmas serem responsabilizadas, então pela Justiça, pelos supostos delitos da população que se comunica por meio das redes sociais.
É fato que o ministro Luís Roberto Barroso, atual presidente do STF, hesitou. Ele pensa em retirar da nova regra os crimes contra a honra, que continuariam sendo arbitrados pelos juízes. O jornal O Globo publicou editorial veementemente contrário ao ministro. Embora o argumento usado para defender a censura seja a abundância de criminosos que fazem uso das redes sociais, incentivando crianças ao suicídio ou enganando os incautos, a Rede Globo não abre mão do controle dos crimes contra a honra pelas big techs.
A imprensa burguesa geralmente se posiciona em bloco sobre a maioria das questões políticas, mas, desta vez, é a Rede Globo que está especialmente empenhada no projeto. Ninguém aqui vá pensar que a emissora da família Marinho esteja preocupada com a honra de alguém ou com o preconceito contra negros e transexuais. Os donos da maior rede de televisão do Brasil – e uma das maiores do mundo – estão vendo além.
É fácil perceber que as empresas farão censura prévia dos conteúdos veiculados por medo de serem punidas. Não é preciso muito esforço para notar que qualquer coisa dita hoje pode ser crime – e levar a altas multas e a muitos anos de prisão. O humorista que perguntou se “um surdo-mudo com mal de Parkinson era gago”, uma piadinha pueril, foi condenado a oito anos de prisão e ao pagamento de multa de R$ 2 milhões por ter ofendido a honra de todos os surdos (que não são mudos) e por aí vai. Como foi calculada a multa nunca saberemos, assim como o destino de vultosa quantia. O Bolsonaro chegou a dizer que nunca entendeu o valor de uma multa que recebeu, de R$ 22 milhões (!), mas sugeriu que houvesse coincidência com o número do seu partido, o 22 (PL).
Uma juíza que teve seus proventos de R$ 600 mil mensais divulgados por um jornalista ganhou um processo contra ele, alegadamente pelo fato de ter sido exposta publicamente. O valor da multa? R$ 600 mil – ou um mês de salário da magistrada. O ministro Flávio Dino, do STF, não hesitou em processar um youtuber que o chamou de “gordola” – o rapaz, aliás, teve suas contas em redes sociais cassadas porque, num programa de entrevistas, perguntou aos convidados por que era permitido haver partido comunista e proibido haver partido nazista. Um dos convidados, o deputado Kim Kataguiri, disse que não deveria ser proibido, mas não foi punido. Ao contrário disso, ganhou uma ação contra a professora Márcia Tiburi, que o chamou de “nazista” – ela teve de indenizá-lo por ter ofendido a sua honra.
Uma moça escreveu na estátua da Justiça a frase “Perdeu, mané” e foi condenada a 14 anos de prisão, alegadamente por estar dando um golpe de Estado. O absurdo é tanto que nem se deram conta do improviso do ato – nem mesmo uma lata de spray ela carregava na bolsa. Escreveu na estátua com o próprio batom (!). O problema é que a frase afrontou o ministro Barroso, o único autorizado a usá-la ao ser abordado por algum inconveniente nas ruas de Nova York. Seja como for, todos os dias temos exemplos de severas condenações por supostos crimes contra a honra, cujo critério é o famoso “depende”: depende de quem ofende, de quem é ofendido e de quem julga.
Esses casos avulsos mal se comparam com o esforço do poderoso lobby sionista para calar a voz de quem defende uma Palestina livre do jugo israelense. Os identitários também têm sua parcela de responsabilidade nessa confusão que se instalou no país. Apoiados em teorias que põem a subjetividade acima dos fatos, influenciam na aprovação de leis moralistas, arguindo em sua defesa um vago sentimento de honra ofendida, seja por alguém que “errou o pronome”, seja por alguém que questionou o uso do banheiro. Qualquer coisa vira processo – e aí depende.
Numa sociedade cada vez mais direitista, em que tanto a extrema direita como a esquerda identitária e os sionistas de todos os matizes só querem ver o outro na cadeia, porque o “discurso de ódio” é sempre o discurso do outro, só resta mesmo às plataformas de redes sociais, ao se tornarem responsáveis pelo que milhões de pessoas dizem 24 horas por dia, censurar. A Rede Globo faz muito gosto, porque esse seria o fim da livre circulação de informação. Afinal, o negócio da emissora da família Marinho é (e sempre foi) o controle da informação, essencial em tempos de regimes antipopulares. A defesa da censura faz parte do projeto político da burguesia.