Reportagem da Folha de S.Paulo transforma rejeição do jornal à CLT a uma expressão da vontade do trabalhador brasileiro (crédito: reprodução)

O jornal Folha de S.Paulo elevou ao estado da arte as técnicas pouco jornalísticas que usa desde 2017 para travestir de conteúdo noticioso a sua militância liberal em favor da redução dos direitos trabalhistas no país.

A frase acima é uma contestação baseada nas duas mais recentes “reportagens” acerca do tema – bem como em seu posicionamento editorial ao longo dos últimos oito anos -, como se mostrará a seguir.

Na última sexta-feira (20), a repórter Maeli Prado publicou uma reportagem com o seguinte título: “Trabalhar por conta própria é melhor que ter emprego para 59% dos brasileiros, mostra Datafolha“. Dois dias depois, foi publicado um segundo texto: “Rejeição à CLT impulsiona apagão de mão de obra na indústria“.

Quanto à primeira reportagem: trata-se de uma análise de uma pesquisa do Datafolha, que foi a campo para fazer duas perguntas aos entrevistados:

1 – Você prefere trabalhar com carteira assinada, mesmo com remuneração menor, ou prefere trabalhar sem carteira assinada, mas com uma remuneração maior?

Pois bem: nada menos do 67% dos brasileiros respondeu que prefere trabalhar… com carteira assinada, mesmo ganhando menos (numericamente) por mês! Apenas 31% prefere trabalhar sem carteira, enquanto 2% dos entrevistados não soube responder.

Esses dados constam na reportagem. Trata-se de um fato inconteste: a absoluta maioria (67%) da população não quer abrir mão dos direitos trabalhistas construídos ao longo de décadas no país. São os números do Datafolha que mostram isso, preto no branco.

Ainda assim, o jornal paulista publicou, doois dias depois, uma reportagem que afirma, já no título, que “Rejeição à CLT impulsiona apagão de mão de obra na indústria”.

Ué, de qual rejeição a Folha está falando? Como conseguiu transformar um apoio inconteste da maioria dos trabalhadores à legislação protetiva laboral em “rejeição à CLT”?

A ginástica interpretativa e falseadora dos fatos se deu por meio da segunda pergunta que fez o Datafolha quando foi a campo:

2 – Você prefere ser contratado por uma empresa ou trabalhar por conta própria?

A essa pergunta, 59% dos entrevistados respondeu que prefere trabalhar por conta própria. Foi este resultado que o jornal optou por elevar ao título de sua reportagem.

Acontece, porém, que tal pergunta não é simples, direta, objetiva e absoluta como o primeiro questionamento. Trabalhar “por conta própria” pode ser, por exemplo, ter seu próprio negócio, ser empresário.

Também pode significar fazer seu próprio horário, trabalhar só quando quiser. Mas, seria este, por exemplo, o caso de motoristas de aplicativos de entregas e transporte? Ora, tais trabalhadores comumente se submetem a jornadas de trabalho de 12, 14 e até 15 horas por dia. Trabalhar muito mais do que as regulamentares oito horas diárias significa fazer o seu próprio horário e trabalhar o quanto quiser?

É tão verdade que a segunda pergunta não faz sentido que o próprio resultado das duas questões combinadas mostra a sua imprestabilidade para uma análise sobre o desejo do trabalhador a respeito das leis que o protegem. Afinal, como poderia uma mesma pessoa preferir trabalhar como CLT e ser autônoma?

Porque, considerando as duas perguntas feitas pelo Datafolha, é isso que acontece com pelo menos 8% dos entrevistados: eles responderam que preferem a CLT e também preferem ser autônomos! É de pensar: qual teria sido o resultado se o Datafolha tivesse utilizado no segundo questionamento o mesmo padrão de objetividade empregado na primeira pergunta?

Qual teria sido o resultado de um questionamento objetivo, como: “Sob o mesmo salário e a mesma quantidade de horas de trabalho, você prefere ser CLT ou autônomo?” O jornal e seu instituto preferiram jamais saber, mas não é difícil de se imaginar.

O adovacy de quase uma década da Folha pelo fim dos direitos dos trabalhadores

Explica-se, primeiramente, ao eventual leitor que não sabe, o significado do termo advocacy: trata-se de uma série de ações coordenadas praticadas por indivíduos ou empresas com o objetivo de defender e promover uma causa. Busca-se, essencialmente, influenciar a opinião pública e os poderes instituídos a realizarem mudanças de políticas (ou leis) em favor do que se advoga.

Considerando o conjunto de reportagens da Folha sobre o tema legislação trabalhista, é isso que o jornal vem fazendo de 2017 para cá: utilizar veladamente seu conteúdo editorial para exceutar verdadeiro advocacy em favor da redução dos direitos trabalhistas. Veja, abaixo, como e em quais circunstâncias.

2017: A “Modernização Trabalhista” de Michel Temer

(Brasília – DF, 13/07/2017) Cerimônia de Sanção da Lei de Modernização Trabalhista.
(crédito: Beto Barata/PR)

A Lei 13.467/2017, conhecida como “Modernização Trabalhista”, foi aprovada em julho e entrou em vigor em novembro do mesmo ano (2017). A reforma alterou mais de cem pontos da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), modificando aspectos fundamentais das
relações laborais no país. Entre as principais mudanças estavam:

– Prevalência do negociado sobre o legislado em diversos aspectos

– Retirada de recursos dos sindicatos representativos dos trabalhadores

– Flexibilização e aumento da jornada de trabalho (banco de horas, trabalho intermitente)

– Facilitamento da terceirização, redução de direitos sobre férias e intervalos e retirada de proteções aos trabalhadores nas regras processuais trabalhistas

No dia 28 de abril de 2017, a Folha publicou editorial com o título “Avanço trabalhista”. Eis o primeiro parágrafo:

A Câmara dos Deputados deu ontem um passo importante para a modernização das relações de trabalho no país, ao aprovar por votos a o projeto que altera a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). O texto representa um avanço significativo na direção de relações trabalhistas mais equilibradas e adequadas à realidade contemporânea.

Já no parágrafo abaixo, a Folha não deixa margem para dúvidas ao revelar quem, de fato, sofre de absoluta “rejeição à CLT”:

A CLT, criada nos anos, reflete uma realidade econômica e social que não mais existe. As transformações tecnológicas, econômicas e sociais das últimas décadas exigem uma legislação trabalhista mais flexível e adaptável.

Não foi só nos editoriais. O conteúdo noticioso da Folha, desde 2017, contaminou-se com a opinião explícita dos donos do jornal. A cobertura abandonou pretensões de neutralidade, assumindo posição clara de defesa da reforma.

2018: “É difícil ser patrão no Brasil”, diz Bolsonaro, e a Folha repete

Crédito: Folha de S.Paulo

Nesta reportagem, as declarações contrárias aos direitos trabalhistas do então presidente eleito, Jair Bolsonaro (PL-RJ), são reproduzidas integralmente pelo jornal, incluindo a afirmação de que trabalhadores devem escolher entre “um pouquinho menos de direito e emprego ou todos os direitos e nenhum emprego”.

Ao contrário do padrão de cobertura e redação do jornal, neste caso específico, as declarações foram reproduzidas sem questionamento ou verificação factual, conferindo-lhes legitimidade através da simples reprodução. Além disso, o texto não incluiu perspectivas alternativas ou dados que questionem as afirmações apresentadas, novamente contrariando a linha editorial do veículo.

A única fonte substantiva da reportagem é o próprio Bolsonaro, sem busca por especialistas independentes ou representantes dos trabalhadores para contestar a “tese” do presidente eleito.

2019 até hoje: ode travestida de jornalismo à reforma trabalhista de Bolsonaro

Do início ao fim de seu governo, Jair Bolsonaro trabalhou para reduzir os direitos trabalhistas. Entre as principais modificações legais advogadas pelo então governo e seus aliados estão:

– A contratação de jovens de 18 a 29 anos com ganhos são limitados a um salário mínimo e meio por até 24 meses, com as empresas contratantes isentas de impostos sociais

– Redução de 75% do valor cobrado das empresas para compor o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), uma das principais garantias para o trabalhador tornado desempregado

Fim do pagamento da multa de 40% do saldo do FGTS em caso de demissão sem justa causa (o governo e seus aliados tentaram, mas não conseguiram aprovar essa redução de direito)

Essas e outras reformas liberalizantes ganharam o apoio da Folha de S.Paulo desde antes de terem sido propostas no Congresso Nacional. Por meio de reportagem  – e não de editorial – do dia 11 de agosto de 2019, o jornal vaticinou que “Promessa de Bolsonaro, carteira verde e amarela tem ponto em comum com novo mercado de trabalho“.

Na reportagem, novamente, a Folha apresentou apenas as ideias do então governo, sem contrapontos, junto com os argumentos da equipe econômica sobre como seriam positivas tais mudanças para o país e para o trabalhador, sempre batendo na ideia de “menos direitos, mais empregos”:

Segundo foi dito por Bolsonaro, e sua equipe, o trabalhador, ao entrar no mercado, escolheria se prefere a carteira atual ou a com menos garantias, que, por outro lado, traria a promessa de maior chance de conseguir emprego.

O argumento para a nova relação de trabalho é que o trabalhador empregado por meio da nova carteira geraria menos encargo ao empregador em por isso, teria a contratação incentivada.

De lá para cá, nada mudou, uma simplesmente busca nos arquivos e acervos da Folha de S.Paulo, por reportagens e artigos editoriais sobre reforma trabalhista provam tal afirmação.

Além disso, a título de ilustração, o DCM designou a seguinte tarefa ao programa de Inteligência Artificial Manus:

“Escrever relatório completo sobre a evolução e vieses dos editorias e reportagens da Folha de S.Paulo a respeito da reforma trabalhista, desregulamentação e flexibilização das leis trabalhistas e da redução da jornada de trabalho, analisando o período da última década (2015-2025). Foco em editoriais e reportagens, não na simples opinião de articulistas do jornal.”

O resultado foi um relatório de 63 páginas que apenas corrobora o que factualmente aponta esta reportagem. Em um dos trechos, se lê:

A pesquisa revela padrões consistentes de viés editorial pró-mercado, estratégias discursivas sofisticadas para legitimação de políticas liberais, e adaptações táticas que mantêm objetivos estratégicos centrais ao longo de diferentes contextos políticos.

Os principais achados incluem: (1) um viés estrutural pró-mercado mantido consistentemente ao longo de quatro governos diferentes; (2) apoio explícito e entusiástico à reforma trabalhista de 2017; (3) estratégias discursivas recorrentes de naturalização, deslegitimação e falsa dicotomia; e (4) um papel hegemônico significativo na construção de consenso em torno da agenda liberal trabalhista.

 

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Last Update: 23/06/2025