O desejo autoritário como desejo político

por Eliseu Raphael Venturi

Há algo de inquietante no modo como se deseja a ordem. Não a ordem justa, mas a ordem em si, crua, vertical, purificadora. Deseja-se punição como se ela fosse reparo. Deseja-se exclusão como se ela fosse justiça. Deseja-se a obediência como se ela fosse dignidade. É esse o sintoma político do tempo: o desejo de se dobrar a um poder que promete nos proteger exatamente daquilo que ele mesmo produz — o medo.

O desejo autoritário não é um desvio moral, nem um erro de avaliação. Ele é o retorno de uma racionalidade que, sequestrada pela técnica, se perdeu de seu fundamento ético. Quando o direito deixa de ser linguagem de mediação entre a vida e a norma, e passa a ser ferramenta de gestão dos desvios, a política se reorganiza como espetáculo de punição. E os sujeitos, encurralados entre a insegurança e o ressentimento, escolhem o algoz que melhor simula a voz do pai.

Não se trata apenas da ascensão de lideranças autoritárias, mas de um circuito libidinal mais profundo, no qual os afetos coletivos são capturados e reorganizados pela promessa de pureza: a sociedade limpa, o cidadão de bem, a normalidade restaurada. Trata-se de uma economia do desejo onde a diferença é tratada como ameaça, e o conflito, como patologia. Assim, o direito, ao invés de escutar o que o mal-estar revela, corrige o que ele denuncia. O risco da vida é negado para garantir o controle da morte.

Nesse contexto, a linguagem dos direitos foi sequestrada pela racionalidade instrumental. Não se fala mais em justiça, mas em segurança. Não se fala mais em igualdade, mas em mérito. Não se fala mais em dignidade, mas em produtividade. É o fetichismo da neutralidade que reveste de técnica aquilo que é, no fundo, uma escolha política por quem pode viver e quem deve ser descartado.

Há um prazer secreto — e por isso tão perigoso — em ver a norma aplicada com rigor. Um gozo punitivo que, ao punir o outro, consola o sujeito de sua própria impotência. O desejo autoritário, assim, se disfarça de justiça, quando na verdade é apenas a repetição do recalque: não se suporta o vazio da diferença, e então se normaliza o mundo.

Mas o que nos leva, afinal, a desejar o que nos oprime? Talvez a resposta esteja menos na razão do que no laço. Um laço social fraturado, em que o outro aparece como intruso e não como interlocutor. Um laço que perdeu a hesitação simbólica que precede a escuta, e que, ao invés de produzir convivência, exige conformidade. O desejo autoritário não nasce apenas da ignorância, mas da frustração crônica de um mundo que prometeu tudo — e entregou apenas desempenho.

A crítica ao autoritarismo, portanto, não pode ser apenas jurídica, nem meramente moral. Ela precisa ser clínica. É necessário escutar o sintoma — esse desejo de obediência, essa ânsia de ordem, esse gozo na punição — e, ao escutá-lo, nomeá-lo como fracasso da linguagem, não como seu sucesso. Porque onde o direito se torna pura técnica, a política vira afeto despolitizado, e o sujeito, apenas massa de gestão.

O que está em jogo não é apenas o futuro da democracia, mas a própria possibilidade de se desejar sem ser cúmplice da opressão. O que nos resta, então, é reabrir o espaço da escuta, não como gesto empático, mas como reconstrução ética do vínculo. Só aí, talvez, o direito possa voltar a ser lugar de palavra — e não de comando.

Eliseu Raphael Venturi é doutor em direito.

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Last Update: 23/06/2025