Cem anos depois: uma nova carta aberta contra o retorno do fascismo

por Arnaldo Cardoso

Em 1 de maio de 1925, com Mussolini já no poder, um grupo de intelectuais italianos denunciou publicamente o regime fascista através de uma carta aberta. Os signatários — cientistas, filósofos, escritores e artistas — posicionaram-se em defesa dos princípios fundamentais de uma sociedade livre: o Estado de Direito, a liberdade individual e a independência de pensamento, da cultura, da arte e da ciência. Este desafio aberto à brutal imposição da ideologia fascista — com todos os riscos que isso comportava — provou que resistir não era apenas possível, mas necessário. Hoje, cem anos depois, a ameaça do fascismo está de volta — e é nosso dever renovar a coragem para enfrentá-la novamente.

O fascismo surgiu em Itália há um século, marcando o início da ditadura moderna. Em poucos anos, espalhou-se pela Europa e pelo mundo, assumindo nomes diferentes, mas mantendo formas semelhantes. Onde quer que tenha tomado o poder, destruiu a separação entre os poderes ao serviço da autocracia, silenciou a oposição através da violência, controlou a imprensa, interrompeu o avanço dos direitos das mulheres e esmagou as lutas dos trabalhadores por justiça económica. Inevitavelmente, infiltrou e distorceu todas as instituições dedicadas a actividades científicas, académicas e culturais. O seu culto da morte exaltou a agressão imperialista e o racismo genocida, desencadeando a Segunda Guerra Mundial, o Holocausto, a morte de dezenas de milhões de pessoas e crimes contra a humanidade.

Ao mesmo tempo, a resistência ao fascismo e às diversas ideologias fascistas tornou-se um terreno fértil para imaginar formas alternativas de organizar as sociedades e as relações internacionais. O mundo que emergiu da Segunda Guerra Mundial — com a Carta das Nações Unidas, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, os fundamentos teóricos da União Europeia e os argumentos jurídicos contra o colonialismo — permaneceu marcado por profundas desigualdades. Ainda assim, representou uma tentativa decisiva de estabelecer uma ordem jurídica internacional: uma aspiração por democracia e paz globais, fundamentadas na proteção dos direitos humanos universais — não apenas civis e políticos, mas também económicos, sociais e culturais.

O fascismo nunca desapareceu, mas por um tempo foi contido. No entanto, nas últimas duas décadas, assistimos a uma nova vaga de movimentos de extrema-direita, com frequentes traços fascistas inconfundíveis: ataques às normas e instituições democráticas, nacionalismo revigorado com retórica racista, impulsos autoritários e agressões sistemáticas contra os direitos daqueles que não se encaixam numa autoridade tradicional fabricada, baseada na normatividade religiosa, sexual e de género. Esses movimentos ressurgiram em todo o mundo, nomeadamente em democracias consolidadas, onde a insatisfação generalizada com o fracasso político em enfrentar as crescentes desigualdades e a exclusão social foi mais uma vez explorada por novas figuras autoritárias. Fiéis à velha retórica fascista, sob o disfarce de um mandato popular ilimitado, essas figuras minam o Estado de Direito nacional e internacional, atacam a independência do poder judicial, da imprensa, das instituições culturais, de educação superior e de ciência — chegando até a tentar destruir dados essenciais e informações científicas. Fabricam “factos alternativos” e inventam “inimigos internos”; usam as preocupações com a segurança como arma para consolidar a sua autoridade e a da elite ultra privilegiada, oferecendo privilégios em troca de lealdades.

Esse processo está agora em aceleração, à medida que a divergência é cada vez mais reprimida através de detenções arbitrárias, deportações, ameaças de violência, e uma campanha incessante de desinformação e propaganda, conduzida com o apoio de barões dos média tradicionais e das redes sociais — alguns apenas complacentes, outros declaradamente entusiastas do tecno-fascismo.

As democracias não são perfeitas: são vulneráveis à desinformação e não são ainda suficientemente inclusivas. No entanto, oferecem intrinsecamente um terreno fértil para o progresso intelectual e cultural, e por isso um potencial contínuo de melhoramento. Nas sociedades democráticas, os direitos e liberdades humanas podem expandir-se, as artes florescem, as descobertas científicas prosperam e o conhecimento avança. Elas garantem a liberdade de questionar ideias e estruturas de poder, de propor novas teorias, mesmo que culturalmente desconfortáveis – algo essencial ao avanço da humanidade. As instituições democráticas oferecem o melhor terreno para enfrentar as injustiças sociais e a melhor esperança de realizar as promessas do pós-guerra: o direito ao trabalho, à educação, à saúde, à segurança social, à participação na vida cultural e científica, e o direito coletivo dos povos ao desenvolvimento, à autodeterminação e à paz. Sem isso, a humanidade enfrentará estagnação, crescente desigualdade, injustiça e catástrofe, incluindo a ameaça existencial causada pela emergência climática, que a nova vaga fascista nega.

No nosso mundo hiper-conectado, a democracia não pode existir no isolamento. Assim como as democracias nacionais exigem instituições fortes, a cooperação internacional depende da implementação efetiva de princípios democráticos e do multilateralismo para regular as relações entre nações, bem como de processos participativos com múltiplos intervenientes para garantir uma sociedade saudável. O Estado de Direito tem que ir além das fronteiras, assegurando que tratados internacionais, convenções de direitos humanos e acordos de paz sejam respeitados. Apesar da governança global e das instituições internacionais existentes deverem ser aperfeiçoadas, a sua erosão em favor de um mundo governado pela força bruta, pela lógica transacional e pelo poder militar representa um retrocesso para uma era de colonialismo, sofrimento e destruição.

Tal como em 1925, nós cientistas, filósofos, escritores, artistas e cidadãos do mundo temos a responsabilidade de denunciar e resistir à ressurgência do fascismo em todas as suas formas. Assim, fazemos apelo a todas as pessoas que valorizam a democracia a agir:

  • Defendamos as instituições democráticas, culturais e educacionais. Denunciemos os abusos contra os princípios democráticos e os direitos humanos. Recusemos o conformismo antecipado.
  • Unamo-nos em acções coletivas, locais e internacionais. Boicotemos e façamos greve sempre que possível. Tornemos a resistência impossível de ignorar e dispendiosa de reprimir.
  • Defendamos os factos e as evidências. Cultivemos o pensamento crítico e criemos laços activos nas nossas comunidades.

Esta é uma luta contínua. Que as nossas vozes, o nosso trabalho e os nossos princípios sejam uma barreira contra o autoritarismo. Que esta mensagem seja uma renovada declaração de resistência.

A Century Later: A Renewed Open Letter Against the Return of Fascism

Target: Democratic citizens worldwide

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Last Update: 21/06/2025