Era maio, fim de manhã em Brasília, quando Vera Lúcia Santana, ministra-substituta do Tribunal Superior Eleitoral, se viu impedida de entrar em um evento oficial para o qual havia sido convidada. Identificada, pontual, com nome na lista — ainda assim, foi barrada. O vigilante que lhe negou a entrada também era negro. Agiu, segundo ela, amparado por um sistema que “autoriza a operar com um olhar racista”.
O episódio, emblemático na sua banalidade cruel, expõe o que a juíza define como um “cotidiano de interdições” vivido por negros no Brasil. Um inquérito para apurar o caso foi aberto na Polícia Federal, a pedido do governo Lula (PT). “O racismo não é uma questão de classe, é uma categoria excludente por si só. Independentemente do nível cultural ou econômico, a pessoa negra está exposta a vivências discriminatórias”, diz. “Não foi, infelizmente, a primeira e lamento ter que reconhecer que não terá sido a última vez.”
Baiana de Salvador, Vera Lúcia Santana é apenas a segunda mulher negra a integrar a Corte Eleitoral. Antes de chegar ao TSE, atuou na advocacia por mais de 30 anos, foi conselheira federal da OAB, coordenadora do Grupo de Trabalho de Igualdade Racial no CNDH e participou da elaboração de políticas públicas de promoção da equidade racial.
Ouvida por CartaCapital, ela ampliou o debate: criticou a omissão do Estado diante do genocídio da juventude negra, apontou riscos da inteligência artificial nas eleições e defendeu diálogo permanente entre TSE e plataformas digitais.
Confira os destaques a seguir.
CartaCapital: O que o episódio de discriminação contra a senhora revela sobre o racismo no Brasil?
Vera Lúcia Santana: Desnuda exatamente o que nós militantes do movimento negro sempre expusemos. O racismo não é uma questão social no sentido de classe, é uma categoria discriminatória excludente por si só. Ou seja, independentemente do nível cultural, da capacidade econômica, do poder de compra, uma pessoa negra aqui no Brasil está exposta à vivência de uma situação discriminatória, rigorosamente racista, preconceituosa, como aconteceu comigo. Eu estava no lugar certo, na hora certa, para o evento para o qual eu tinha sido convidada e, no entanto, a autoridade de um vigilante negro, inclusive, terceirizado – ou seja, uma mão de obra que não tem qualquer vínculo com o poder público, mas que está autorizado, pelo sistema, por uma elite que o contrata, a operar com um olhar racista preconceitoso. Essa é a lição, digamos, que a gente extrai e que, embora não seja exatamente uma novidade, é sempre muito aviltante, muito ofensiva para quem vivencia.
CC: Essa experiência dialoga com o cotidiano da população negra fora dos espaços de poder?
VLS: A ocorrência por mim experimentada diz tudo sobre o que é o cotidiano de impedimento, das interdições sofridas por mulheres negras, por homens negros em nossa sociedade, quer no impedimento a uma vaga de emprego, por exemplo, até a ocupação de espaços nas diversas instâncias em todos os poderes indistintamente.
Tenho uma experiência militante antirracista que se arrasta há muitos anos. Como advogada, naturalmente, já atuei também em diversos casos de racismo. Não foi, infelizmente, a primeira e lamento ter que reconhecer que não terá sido a última vez que eu mesmo vivi uma situação grotesca, direta e pessoal de racismo, mas a repercussão que o fato ganhou deve nos servir para trazer algumas reflexões, não é?
As formas como o racismo se manifesta que vão desde essa interdição no acesso físico de uma pessoa, independentemente do papel institucional que ela ocupa e do ingresso pura e simples em um prédio, a até as violações bestiais, brutais, odiosas e hediondas, muitas vezes praticadas por agentes do Estado. E aí falo especificamente da violência policial, uma violência estatal que alcança e vitima especialmente a juventude negra. É interessante lembrar que ainda nos idos de 2014, o Congresso Nacional instalou CPIs destinadas a apurar os níveis de violência contra a juventude negra e os relatórios apontavam para a situação de genocídio do povo negro, isso há mais de dez anos. De lá para cá, nenhuma medida sugerida naqueles relatórios foi adotada e a gente só vê crescer essa matança, porque a matança é o termo próprio para definir o que a gente vê diuturnamente pelo País.
As polícias militares são dotadas de capacidade para fazer seu papel ostensivo, sem precisar recorrer à violência, menos ainda à violência letal com que opera. Então, quando faz, é porque certamente tem, senão uma voz direta de comando, mas tem depois uma anuência para essas práticas, que passa inclusive pelo sistema de Justiça. O Ministério Público, no seu dever constitucional do controle externo da atividade policial, me parece que tem deixado a desejar neste quesito. E no próprio Poder Judiciário, onde a gente tem uma situação de impunidade muito grave porque os crimes praticados, os abusos, excessos de parte dos agentes das forças policiais brasileiras restam impunes e retroalimentam a prática abusiva e criminosa de matiz indiscutivelmente racial.
CC: Quais são os principais desafios do TSE para garantir a lisura das eleições de 2026 diante do contexto político e social atual?
VLS: O Poder Judiciário eleitoral brasileiro é dotado de uma capacidade formativa, organizativa que é realmente fascinante. O engajamento, o envolvimento dos servidores da Justiça Eleitoral contribuem para o resultado de êxito que a gente tem vivido com os processos eleitorais no Brasil, independentemente de qualquer correlação de força política da sociedade e na vida partidária. Agora é óbvio que a gente tem desafios grandes: o Brasil, é um país gigantesco, continental, mas a estruturação da Justiça Eleitoral está apta a fazer o enfrentamento constitucional de todas as adversidades que possa vir a experimentar.
Me parece que o grande balizador, o grande definidor da qualidade do exercício democrático do processo eleitoral é dado pela própria sociedade. Nós temos os partidos políticos como representantes legítimos da democracia representativa, mas somos nós, eleitores e eleitoras, que definimos a composição dos poderes Executivo e Legislativo. Então, a qualidade do voto é dentro do exercício dessa nossa autonomia como sociedade e a soberania do voto, com um sistema de votação que nos oferece total e absoluta segurança.
‘Ah, o cenário é difícil’. Sim, é difícil na dimensão democrática, é difícil porque a gente tem a realidade com visível disfunção, distorção, desvio de finalidade no uso das tecnologias de comunicação, como essa febre da inteligência artificial. Mas, por óbvio, faço uma aposta muito alta e segura de que a comunicação institucional e os meios de comunicação contribuirão para a criação desse elo de interlocução da sociedade com o Estado. A gente não pode jogar a responsabilidade exclusivamente sobre a estrutura do Poder Judiciário eleitoral. A sociedade é a grande responsável pela sustentação democrática de um País.
CC: A senhora vê sinais de que a Justiça Eleitoral voltará a ser alvo de campanhas de desinformação e ataques como nas eleições de 2022?
VLS: Acho que considerando os elementos que temos hoje é possível pensar 2026 sem nenhum nível de questionamento institucional. Os poderes constituídos, todos eles, estão absolutamente consensuados no que tange ao reconhecimento dessa robustez, deste vigor da organização judiciária eleitoral do País como o garantidor constitucional do processo político, da vida política. Do ponto de vista da institucionalidade, não visualizo hoje nenhuma fonte de fomento a qualquer conturbação relativa à lisura do processo [eleitoral] no que tange a condução da vida política pelo Tribunal da Democracia, que é o TSE.
CC: O avanço da inteligência artificial generativa levanta novas preocupações em relação à integridade da informação. O TSE já discute medidas para lidar com conteúdos falsos criados por IA?
VLS: O calendário político da sociedade, dos partidos, da dinâmica da vida, não é exatamente o calendário jurídico que o Tribunal Superior Eleitoral organiza e elabora. Então, naturalmente, não temos ainda [discutido essas medidas], porque não está aberto institucionalmente o calendário eleitoral normativo, na competência que a Constituição atribui à Justiça eleitoral. Mas, seguramente, os órgãos da estrutura organizativa da Justiça Eleitoral brasileira estão atentos, acompanhando pari passu toda a evolução tecnológica – e involução, digamos assim – no mal uso de todo avanço que a ciência da informação disponibiliza à sociedade. Não tenho competência institucional para dizer sobre quais medidas estão sendo já pensadas, estudadas, mas sei tranquilamente que o nosso Judiciário eleitoral não está inerte ao desenrolar da tecnologia como instrumental irreversível dentro do diálogo entre humanos.
CC: Há articulações para responsabilizar mais efetivamente plataformas digitais pelo conteúdo que circula em seus ambientes?
VLS: A responsabilização das plataformas, especialmente quando voltadas à veiculação de conteúdos de natureza político, partidária e eleitoral, é um debate que incumbe, certamente, ao Congresso Nacional e residualmente no poder normativo que a Constituição confere ao TSE. Isso terá que ser feito no tempo próprio. Os estudos técnicos é que vão informar, mas é fundamental a gente ter em mente sempre que o TSE tem uma tradição de estreito e transparente diálogo com essas grandes plataformas, com a assinatura de pactos, de acordos que chamam a responsabilidade institucional delas sem exatamente uma ordenação imperativa de cima para baixo.
A gente tem uma tradição democrática participativa e fiscalizadora, porque o TSE atua de maneira muito aberta, com acesso aos partidos políticos, instituições democráticas e, no caso específico, às plataformas, na elaboração conjunta, participativa, de regramentos a serem cumpridos por elas. Então, acho que a gente tem e precisa manter sempre esse ambiente de diálogo institucional responsivo.
CC: As investigações da Polícia Federal sobre as eleições de 2024 apontaram indícios de envolvimento do crime organizado nas municipais. Que tipo de articulação o TSE tem com os órgãos de segurança para que iss não se repita em 2026?
VLS: A presença de forças milicianas na vida nacional é uma preocupação real. No que se refere à organização da vida política, partidária e nas competências do Tribunal Superior Eleitoral, já temos tido precedentes de atuação, a partir das competências das zonas eleitorais, dos TREs e até quando chega ao TSE, sobre candidaturas que não são registradas em virtudes de provas robustas, dando conta do envolvimento muito evidenciado com forças milicianas.
São organizações criminosas perigosíssimas que desmantelam, em muitos lugares, o funcionamento das agências públicas governamentais, com impactos no cotidiano. O momento eleitoral é, portanto, mais um momento [em que essa atuação pode ocorrer] que, por óbvio, traz uma preocupação muito grande às forças democráticas. É preciso que as instituições atentas, denunciar, combater [o crime organizado]. A Justiça Eleitoral já demonstra ter uma capacidade para repelir a indevida, ilegal e criminosa investida de forças milicianas na vida democrática pela via do voto, muitas vezes dado a candidaturas assentadas sobre o lastro do crime. Acho que a gente tem, sim, toda capacidade de fazer esse enfrentamento no que tange as competências e o poder da Justiça Eleitoral brasileira.
CC: Por que o avanço da representatividade no Judiciário tem sido tão lento, especialmente nos tribunais superiores?
VLS: Nosso sistema de justiça é composto especialmente por uma representação da elite nacional e essa elite nacional é branca, então são grandes os obstáculos às políticas de inclusão e representativida dos negros e mulheres no sistema de justiça, já que somos a maioria do povo brasileiro. As ações que possam fazer com eficácia e efetividade esse enfrentamento são inadiáveis, a gente tem esse debate já posto, temos tido avanços, mas não é um cenário exclusivo do Poder Judiciário. Esse mesmo desenho de exclusão de negros e negros está na ocupação de espaços diretivos da Ordem dos Advogados do Brasil, no âmbito do Ministério Público, da Defensoria Pública, enfim.
Agora, são inegáveis alguns esforços hoje empreendidos, com vistas a essas correções, que têm, inclusive, um caráter de reparação histórica. Destaco no âmbito do Poder Judiciário, até porque foi ele, pelas ações, pelas iniciativas do Conselho Nacional de Justiça, a tomar as primeiras iniciativas e políticas de inclusão [de negros e negras]. A OAB – e falo como advogada que sou – também tem empreendido seus esforços, mas ainda estamos bem distantes da equidade. O que a gente quer é uma sociedade livre do racismo, em que a coexistência humana se dê da forma mais fraterna, solidária, respeitosa. Até porque a dignidade humana é um atributo de cada um de nós, e a nossa Constituição a consagra como um princípio fundante da própria República Federativa do Brasil. Então, o que a gente espera e trabalha é para que isso se materialize.
CC: Qual sua opinião sobre a PEC que acaba com o a reeleição e unifica as eleições municipais e nacionais em uma única data?
Confesso que não tenho acompanhado o debate legislativo sobre esse aspecto da PEC. Claro que o Congresso Nacional é o espaço próprio para esse debate, no exercício dos seus poderes constitucionais. Mas talvez seja interessante, respeitando a soberania, e legitimidade do Parlamento, um debate mais amplo, uma chamada para o conjunto da sociedade [apontar o que pensa], de forma que a deliberação final do Congresso expresse, de maneira mais ampla e participativa mesmo, o que pensa o povo brasileiro sobre essas questões.
Espero que o processo democrático mais amplamente participativo venha a definir a conformação das discussões [sobre a PEC]. E que essa construção resulte em qualificação da vida democrática e não em uma precarização do próprio sistema eleitoral, porque isso seria um retrocesso muito grande. Qualquer modificação que não potencialize, que não traga avanço real, que não contribua para a democracia material, substantiva que o Estado brasileiro ainda nos deve. Somos um país ainda com níveis alarmantes de exclusão, uma exclusão que é determinada pelo racismo, então me parece que o fundamental é a gente ter um sistema eleitoral que potencialize a qualidade da nossa representação, a diversidade da nossa representação política e nada que venha a precarizar e fazer ainda menor, mais sub representada do que já é hoje.
Sou muito esperançosa [quanto a este debate] e acho que temos um Judiciário eleitoral pronto para dar a sua contribuição, dentro dos seus limites constitucionais, para o aperfeiçoamento da nossa vida democrática.