Um em cada dez brasileiros já completou 60 anos em um país cujo a expectativa de vida ao nascer superou os 76 anos, segundo estimativa do IBGE. A chamada ‘década do envelhecimento saudável nas Américas’ pelas Nações Unidas, no entanto, ainda não se realiza de forma igualitária. A cada ano, mais e mais pessoas LGBT+ chegam à terceira idade com o orgulho, mas também sob desafios: o etarismo, a solidão, os obstáculos no acesso à saúde e a ausência de políticas públicas que garantam um envelhecimento digno e fora do armário.
Sem nenhuma menção no Estatuto do Idoso e carente de políticas específicas, a população LGBT+ mais vulnerável que alcança a velhice frequentemente se vê forçada a esconder sua identidade em troca de apoio e assistência. “A grande maioria dos abrigos de longa permanência é mantida por instituições religiosas, que não aceitam outras sexualidades ou expressões de gênero”, aponta Nelson Matias Pereira, presidente da Associação da Parada do Orgulho LGBT+ de São Paulo. “É preciso cobrar do poder público a criação de espaços de convivência e permanência que respeitem a diversidade e acolham nossas trajetórias. Como é possível, em 2025, falar de envelhecimento sem falar de sexualidade e gênero?”.
Por isso, neste domingo, 22, a 29ª edição da Parada do Orgulho LGBT+ de São Paulo, considerada a maior do mundo, ocupará a Avenida Paulista com o tema ‘Envelhecer LGBT+: Memória, Resistência e Futuro”. Segundo Pereira, a proposta é provocar o debate dentro e fora da comunidade sobre os desafios de um grupo que conquistou, a duras penas, o direito à longevidade. “O envelhecimento é a celebração da memória de quem pavimentou nosso caminho, é a resistência de hoje e também o futuro da comunidade”, resume.
“É como se o LGBT+ não fosse envelhecer”, afirma. “Pessoas trans crescem ouvindo que travestis têm expectativa de vida de 35 anos. Se eu vou morrer aos 35, por que pensar no futuro? A juventude precisa saber que também tem o direito de envelhecer.”
A 29ª edição da Parada do Orgulho LGBT+ será transmitida ao vivo no YouTube e contará com shows de Pedro Sampaio, Pepita, Banda Uó e a drag queen Silvetty Montilla. Confira a programação completa clicando aqui.
‘Privilégio’ de envelhecer começa no acesso à saúde
Para o geriatra Milton Crenitte, especialista em sexualidade e gênero, o acesso à saúde é central para um envelhecimento digno entre membros da comunidade LGBT+. “Em um mundo desigual, especialmente em uma cidade como São Paulo, o direito de envelhecer é ditado por marcadores como renda, escolaridade e raça — mas também por orientação sexual e identidade de gênero”, afirma. “Tudo isso impacta o acesso à saúde, essencial para a qualidade de vida na velhice.”
Crenitte aponta também que a estrutura do sistema de saúde ainda reproduz uma lógica heterocisnormativa, com carência de protocolos inclusivos e falta de preparo nas universidades para lidar com a diversidade de corpos e vivências. “A porta do consultório não pode ser mais um armário”, resume.
O médico coordenou o estudo Transformando o invisível em visível: disparidades no acesso à saúde em idosos LGBT+, que ouviu 6.693 pessoas — das quais 1.332 se identificaram como LGBT+. Entre os resultados, 53% dos entrevistados LGBT+ não acreditam que os profissionais estejam preparados para atendê-los, e 34% acham que seus médicos desconhecem sua orientação sexual ou identidade de gênero.
O levantamento mostrou outras disparidades expressivas. Enquanto 74% das mulheres cis heterossexuais disseram já ter feito mamografia ao menos uma vez, entre as mulheres lésbicas esse número caiu para 40%. A negligência decorre tanto de barreiras institucionais quanto da sensação de invisibilidade. A mulher lésbica enfrenta um apagamento da sua sexualidade no sistema de saúde, como se não precisasse de rastreio ou atenção específica.
Cada letra da sigla, completa Crenitte, carrega particularidades. Pessoas trans, com expectativa de vida reduzida pela violência e pela exclusão, enfrentam desde cedo o abandono familiar, a evasão escolar e o mercado de trabalho precarizado — fatores que comprometem a seguridade social. “O estresse crônico, aliado à exclusão e à falta de acesso a serviços, pode inclusive contribuir para quadros como Alzheimer precoce.”
Já entre homens gays, o envelhecimento pode ser agravado pela pressão estética e a obsessão com juventude e masculinidade. “Esse conflito com a autoimagem pode levar à depressão ou ao uso excessivo de procedimentos estéticos.”
Crenitte defende que a abordagem médica precisa considerar o histórico social, emocional e físico desses grupos. “Não estamos falando apenas de práticas sexuais ou hormonização, mas de vivências atravessadas por dor, discriminação e estratégias de sobrevivência. Muitas dessas pessoas fizeram ou ainda fazem uso abusivo de substâncias. Precisamos discutir interações medicamentosas e redução de danos. Cada caso deve constar no protocolo de cuidado.”
‘Quero poder falar da minha esposa’
“A sociedade pensa que o idoso só espera pela morte, que não tem mais direitos, ainda mais a nossa comunidade que foi tão violada e continua sendo, com tanta violência”, reflete Dora Cudignola, ativista LGBT+. “Sou uma lésbica feliz aos 72 anos. Eu não quero a morte, depois de uma vida de luta eu quero poder viver cada encontro, cada respiro.”
Dora é presidente da EternamenteSou, associação criada em 2017 para reunir e acolher idosos da comunidade em São Paulo. Com a missão de romper com a solidão e cultivar redes sólidas de apoio entre os membros, a associação é a primeira e única no Brasil focada no atendimento psicossocial e assistência à população LGBT+ maior de 50 anos.
Ao analisar a vulnerabilidade social que muitas velhices LGBT+ estão expostas, Dora destaca que a ausência de uma perspectiva de futuro em meio a constante convivência com a violência da homotransfobia possa ter sido um dos fatores determinantes.
“É uma comunidade que atravessou uma ditadura, lidou com a exclusão e o medo constante da violência”, ressalta. “Alguns não tiveram essa preocupação. Na juventude, se ele ou ela ganhava um dinheiro, pensava ‘ah, vou num barzinho me divertir com os meus’. Era um jeito de atravessar tudo isso, talvez o único lugar que eles pudessem ser assumidos. Mas agora a idade chegou, como continuar vivendo?”
Ela também reforça a cobrança para que o parlamentares e o governo tratem como urgência a criação de instituições de longa permanência capazes de acolher pessoas LGBT+, sem empurrá-las de volta ao armário. “É o meu sonho”, diz. “Sou diretora aposentada, tenho uma segurança financeira. Se eu tivesse que ir para uma dessas casas, gostaria de ainda poder falar da minha esposa que partiu, compartilhar a minha vida abertamente, sem medo de rejeição ou violência”, desabafa.
Além da assistência psicossocial, acesso à saúde, oficinas e rodas de conversa, a EternamenteSou auxilia cerca 40 famílias LGBT+ com cestas básicas. A organização também conta com um corpo jurídico que responsável pelo cadastro no CadÚnico, que garante acesso a programas como o Bolsa Família.