de JANETHE FONTES

“Hoje você é quem manda / Falou, tá falado / Não tem discussão, não / A minha gente hoje anda falando de lado / E olhando pro chão”
(Chico Buarque de Holanda).

Desde a invasão dos portugueses em terra brasilis, a violência, que derramou o sangue de milhões de pessoas, tingiu essas terras de um vermelho ainda mais profundo do que o da própria madeira que deu nome a este país. Tratados como seres inferiores pelos colonizadores, indígenas e, posteriormente, milhões de africanos e africanas, que foram trazidos e trazidas à força e a ferro a este país, alimentaram, com seu suor e sacrifício de suas vidas, a cobiça sem limites de seus algozes.

Mas apesar da tentativa de apagar suas culturas e conhecimentos, de terem suas línguas silenciadas e seus corpos violentados, sua resistência nunca arrefeceu. Nas senzalas e nos aldeamentos, nas fugas e nos quilombos, nas rebeliões e nas irmandades, eles e elas forjaram, mesmo sob o jugo da escravidão e do extermínio, os alicerces de uma identidade brasileira que o poder dominante jamais conseguiu apagar completamente.

Tendo ainda como foco a violência que deixou marcas indeléveis na construção desse país e de nossa identidade, este ensaio propõe-se a fazer uma breve análise da corajosa militância cultural e política do escritor, compositor e cantor Chico Buarque Holanda, em um período histórico que, justificadamente, ainda nos assombra não somente pela violência, mas, sobretudo, pelo risco iminente de sempre tornar a bater à nossa porta: a ditadura militar no Brasil – que teve início em 1964 e se estendeu por vinte e um anos, tendo como justificativa ser um movimento contra a (inventada) “ameaça comunista”, mas logo revelou seu caráter brutalmente autoritário, deixando como marca o desaparecimento de inúmeras pessoas, após todo tipo de atrocidade, prisões arbitrárias e forte controle sobre a imprensa e a cultura.

Pois é nesse contexto de cerceamento das liberdades, onde a arte se sobressai com um espaço crucial de resistência e denúncia, que emerge o jovem Chico Buarque e torna-se uma das vozes mais corajosas e poéticas de oposição ao regime.

Suas canções, muitas vezes carregadas de ironia e metáforas, por vezes, driblaram a censura e ecoaram o descontentamento popular. “A gente tinha que ser mais esperto que a censura. A metáfora era nossa arma.” (Chico Buarque). Assim, este singelo (e audacioso) ensaio propõe-se a tentar demonstrar, em breves linhas, a importância da produção artística de Chico Buarque de Holanda, que nos revela muito não somente sobre esse sombrio período como também sobre a construção de nossa história e identidade, destacando alguns trechos emblemáticos de suas obras que simbolizam a sua luta, a nossa luta, pela democracia em seu sentido mais profundo, enquanto sistema político e social baseado no princípio de que o poder emana do povo.

Apesar de você (1970)

Uma de suas composições mais icônicas, a música Apesar de Você, foi interpretada como um ataque direto ao governo militar: “Apesar de você / amanhã há de ser / outro dia”. Porém, a ambiguidade dessa música permitiu que fosse inicialmente liberada, mas, ao ser identificada como uma crítica ao regime, foi logo censurada e seus discos recolhidos. Chico Buarque Holanda respondeu com ironia, afirmando que a canção era apenas uma briga entre namorados, mas o povo compreendeu a mensagem.

Cálice (1973)

Em parceria com Gilberto Gil, Chico compôs Cálice, uma das músicas mais simbólicas da resistência. O título é um trocadilho com “cale-se”, representando o silêncio impelido pela ditadura. A letra é repleta de metáforas religiosas e políticas: “Pai, afasta de mim esse cálice / De vinho tinto de sangue”. Essa canção foi proibida e só pôde ser lançada alguns anos depois, tornando-se um hino da luta pela liberdade de expressão.

Samba de Orly

Exilado na Itália em 1969, um ano após a promulgação do AI 5, mesmo distante, Chico continuou compondo músicas que retratavam a sua saudade do Brasil e a situação, sob a ditadura: Pede perdão pela omissão / Um tanto forçada, mas não diga nada / Que me viu chorando / E pros da pesada diz que vou levando.

Ao retornar ao país, em 1970, suas obras passaram a sofrer censura sistemática.  Mas Chico não se intimidou e usou também o Teatro como forma de resistência.

Calabar (1973)

Além da música, Chico investiu no teatro como forma de crítica política. A peça Calabar: o elogio da traição, escrita em parceria com Ruy Guerra, foi censurada por retratar um personagem histórico que oscilava entre portugueses e holandeses – uma alegoria à ambiguidade e à resistência contra opressores. O governo viu na obra um perigoso paralelo com a resistência à ditadura.

Como singela conclusão de um trabalho artístico tão vasto e importante, e, por isso mesmo, tão difícil de descrever em tão poucas linhas, gostaria apenas de ressaltar que em vários momentos de nossa história, aqueles que detinham o poder tentaram silenciar vozes dissidentes.

Contudo, artistas como Chico Buarque encontraram na arte uma forma de protesto, de denúncia. E suas canções, no período da ditadura, que eram cheias de duplos sentidos, permitiram que o povo brasileiro encontrasse, mesmo sob a forte censura, um eco de sua própria insatisfação e angústia.

Mas Chico Buarque não apenas testemunhou os “anos de chumbo”, como também ajudou a atravessá-los com coragem, através de sua arte, que se mantém como um testemunho da resistência cultural e um lembrete de que, mesmo nos tempos mais sombrios, a poesia, a música, a literatura, enfim, a arte, pode ser utilizada como uma importante arma na luta pela liberdade.

Por fim, é importante salientar ainda que a arte atemporal de Chico Buarque de Holanda nos revela a construção da nossa história e identidade, forjada no sangue, no suor e na esperança traiçoeira de vários povos que habitavam ou passaram a habitar esse território, chamado Brasil. E Chico Buarque Holanda, apesar de ser um homem branco e fazer parte de uma elite, usa a sua arte para nos levar à compreensão de nossa complexa identidade.

A canção Vai passar” (1983), que Chico compôs com Francis Hime, em celebração ao fim do regime militar, ilustra bem esse período sombrio da história brasileira que jamais deve ser esquecido, assim como jamais deve ser esquecida a história de luta de tantos outros brasileiros e brasileiras que nos antecederam…

“Num tempo / Página infeliz da nossa história / Passagem desbotada na memória / Das nossas novas gerações

Dormia / A nossa pátria-mãe tão distraída / Sem perceber que era subtraída / Em tenebrosas transações

Seus filhos / Erravam cegos pelo continente / Levavam pedras feito penitentes / Erguendo estranhas catedrais

E um dia afinal / Tinham direito a uma alegria fugaz / Uma ofegante epidemia / Que se chamava carnaval”

*Janethe Fontes é professora de história e sociologia e escritora. Autora, entre outros livros, de Sentimento fatal (Dracaena).

Referências


BUARQUE, Chico; GUERRA, Ruy. Calabar: elogio da Traição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996.

BUARQUE, Chico. Apesar de você. Rio de Janeiro: Polygram, 1970. Disponível em: https://www.letras.mus.br/chico-buarque/7582.

BUARQUE, Chico; GIL, Gilberto. Cálice. Rio de Janeiro: Polygram, 1978. Disponível em: https://www.letras.mus.br/chico-buarque/45121.

BUARQUE, Chico; FILHO, Antônio Pecci (Toquinho); Moraes, Vinícius. Samba de Orly. Rio de Janeiro: Marola Edições Musicais, 1970. Disponível em: https://www.letras.mus.br/chico-buarque/75604.

BUARQUE, Chico; HIME, Francis. Vai passar. Rio de Janeiro: Marola Edições Musicais, 1970. Disponível em: https://www.letras.mus.br/chico-buarque/75604.

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Last Update: 20/06/2025