Para podermos examinar essa questão – que foi decidida de forma contrária pelo STF, no julgamento da ADPF 153, protocolada pela OAB Nacional –, é necessário iniciar pela conceituação de qual é a “ordem jurídica democrática pós-ditadura”.
Como todos sabem, antes do golpe militar de 1º de abril de 1964, vigorava no Brasil a Constituição de 1946, que foi rasgada pelos generais golpistas. A repressão aos opositores não respeitou qualquer direito constitucional, a não retroatividade da legislação penal, a segurança jurídica ou os direitos adquiridos. Prevaleceu o arbítrio e o cometimento de crimes de lesa-humanidade contra os que resistiram à ditadura.
Após o golpe militar de 1964, foi imposta – a um congresso mutilado e amordaçado – a “constituição” de 1967, que prevaleceu até 1988. Alguns falam, ainda, de uma “constituição” de 1969 – outorgada pela junta militar, após o AI- 5 –, que outros consideram uma mera emenda à “constituição” de 1967, que incorporou à “constituição” de 1969 os atos institucionais e os decretos-lei do regime militar, restringindo ainda mais as liberdades democráticas e os direitos dos cidadãos, visando a institucionalização do arbítrio.
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A ordem jurídica democrática só foi instaurada no Brasil após a entrada em vigor da “Constituição Cidadã”, aprovada em 22 de setembro de 1988 e promulgada em 5 de outubro de 1988, que pôs fim à “constituição” ditatorial.
É a Constituição de 1988 que devemos examinar se ela recepcionou ou não a autoanistia concedida pela ditadura aos crimes de sequestro, tortura, assassinato e desaparecimento de opositores políticos, executados por agentes da ditadura a mando dos altos escalões militares.
A ANISTIA AOS PERSEGUIDOS PELA DITADURA NA CONSTITUIÇÃO DE 1988
Esclarecido qual é o ordenamento constitucional pós-ditadura, examinemos agora o que dispõe a Constituição Cidadã de 1988.
Nos incisos do seu artigo 5º, a Constituição de 1988 determina:
III – ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante; (…)
XXXV – a lei não excluirá de apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito; (…)
XLIII – a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática de tortura, […] o terrorismo e os definidos como crimes hediondo, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evita-los, se omitirem;
XLIV – constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado democrático”
Assim, segundo os incisos III e XLIII, de seu artigo 5º, são inadmissíveis o tratamento desumano e degradante e a tortura, e a prática desta não é suscetível de anistia, por ela respondendo executores e mandantes. Onde encontrar aqui a recepção de anistia aos torturadores?
Da mesma forma, são imprescritíveis os crimes de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado democrático, como ocorreu com o golpe militar de 1964. Portanto, tampouco foi acolhida a anistia aos golpistas militares e civis.
Por fim, o inciso XXXV do artigo 5º dispõe que a lei (o que vale para a Lei 6.683/79) não excluirá de apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. Como justificar que o Judiciário se negue, nos dias de hoje, a apreciar as denúncias de sequestro, tortura, assassinato e ocultação de cadáver de opositores ao regime militar? E para aqueles que alegam que isso só vale a partir da Constituição de 1988, ressalto que inclusive a “constituição” ditatorial, que vigorou entre 1967 e 1985, determinava o mesmo:
“Art. 153, § 4º: e): A lei não poderá excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão de direito individual.”
Passemos, agora ao exame do que a Constituição de 1988 dispôs especificamente sobre a Anistia aos perseguidos políticos pela ditadura, o que está regrado no artigo 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias:
“Art. 8º: É concedida anistia aos que no período de 18 de setembro de 1946 até a data da promulgação da Constituição foram atingidos, em decorrência de motivação exclusivamente política, por atos de exceção, institucionais ou complementares, aos que foram abrangidos pelo Decreto Legislativo nº 18 de 15 de dezembro de 1961, e os atingidos pelo Decreto-Lei nº 864, de 12 de setembro de 1969”.
Onde a Constituição de 1988 acolheu a anistia aos agentes do regime militar responsáveis por crimes de sequestro, tortura, assassinato e desaparecimento de opositores políticos? Onde qualquer referência à anistia a “crimes conexos”?
Em nenhuma parte!
Mas, quem sabe, a legislação infraconstitucional estendeu a anistia aos criminosos do regime militar?
Examinemos a Lei nº 10.559/2002, que regulamentou o art. 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, tornando-se a Lei da Anistia na ordem jurídica pós-redemocratização:
“Art. 2º São declarados anistiados políticos aqueles que, no período de 18 de setembro de 1946 até 5 de outubro de 1988, por motivação exclusivamente política, foram:
I – atingidos por atos institucionais ou complementares, ou de exceção na plena abrangência do termo;
II – punidos com transferência para localidade diversa daquela onde exerciam suas atividades profissionais, impondo-se mudanças de local de residência;
III – punidos com perda de comissões já incorporadas ao contrato de trabalho ou inerentes às suas carreiras administrativas;
IV – compelidos ao afastamento da atividade profissional remunerada, para acompanhar o cônjuge;
V – impedidos de exercer, na vida civil, atividade profissional específica em decorrência das Portarias Reservadas do Ministério da Aeronáutica nº S-50-GM5, de 19 de junho de 1964, e nº S-285-GM5;
VI – punidos, demitidos ou compelidos ao afastamento das atividades remuneradas que exerciam, bem como impedidos de exercer atividades profissionais em virtude de pressões ostensivas ou expedientes oficiais sigilosos, sendo trabalhadores do setor privado ou dirigentes e representantes sindicais, nos termos do § 2º do art. 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias;
VII – punidos com fundamento em atos de exceção, institucionais ou complementares, ou sofreram punição disciplinar, sendo estudantes;
VIII – abrangidos pelo Decreto Legislativo nº 18, de 15 de dezembro de 1961, e pelo Decreto-Lei nº 864, de 12 de setembro de 1969;
IX – demitidos, sendo servidores públicos civis e empregados em todos os níveis de governo ou em suas fundações públicas, empresas públicas ou empresas mistas ou sob controle estatal, exceto nos Comandos militares no que se refere ao disposto no § 5º do art. 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias;
X – punidos com a cassação da aposentadoria ou disponibilidade;
XI – desligados, licenciados, expulsos ou de qualquer forma compelidos ao afastamento de suas atividades remuneradas, ainda que com fundamento na legislação comum, ou decorrentes de expedientes oficiais sigilosos.
XII – punidos com a transferência para a reserva remunerada, reformados, ou, já na condição de inativos, com perda de proventos, por atos de exceção, institucionais ou complementares, na plena abrangência do termo;
XIII – compelidos a exercer gratuitamente mandato eletivo de vereador, por força de atos institucionais;
XIV – punidos com a cassação de seus mandatos eletivos nos Poderes Legislativo ou Executivo, em todos os níveis de governo;
XV – na condição de servidores públicos civis ou empregados em todos os níveis de governo ou de suas fundações, empresas públicas ou de economia mista ou sob controle estatal, punidos ou demitidos por interrupção de atividades profissionais, em decorrência de decisão de trabalhadores;
XVI – sendo servidores públicos, punidos com demissão ou afastamento, e que não requereram retorno ou reversão à atividade, no prazo que transcorreu de 28 de agosto de 1979 a 26 de dezembro do mesmo ano, ou tiveram seu pedido indeferido, arquivado ou não conhecido e tampouco foram considerados aposentados, transferidos para a reserva ou reformados;
XVII – impedidos de tomar posse ou de entrar em exercício de cargo público, nos Poderes Judiciário, Legislativo ou Executivo, em todos os níveis, tendo sido válido o concurso.”
Onde – nos dezessete incisos da Lei nº 10.559/2002 – qualquer menção à anistia aos agentes do regime militar responsáveis por crimes de sequestro, tortura, assassinato e desaparecimento de opositores políticos? Onde qualquer referência à anistia a “crimes conexos”?
Em nenhuma parte!
Comprovado de forma indiscutível que a ordem jurídica pós-ditadura não acolheu a anistia aos agentes do regime militar que cometeram os crimes de lesa-humanidade – seja na Constituição de 1988, seja na Lei nº 10.559/2002 –, fica uma pergunta: por que o STF não acolheu a ADPF 153 da OAB Nacional?
O exame do voto do então Ministro do Eros Grau nos mostra que esse grave equívoco do STF teve por base a argumentação do Relator da ADPF 153, que defendeu que a nova ordem jurídica democrática no Brasil não foi inaugurada pela Constituição de 1988 – aprovada por uma Assembleia Nacional Constituinte livremente eleita –, mas sim pelo Congresso da ditadura – amordaçado e emasculado pelo “pacote de abril”, com 22 senadores “biônicos” –, que aprovou, no “apagar das luzes”, em 27 de novembro de 1985, a emenda “constitucional” nº 26, que incluiu na “constituição da ditadura” a anistia aos chamados “crimes conexos”, ou seja, a anistia aos agentes e mandantes dos crimes de sequestro, tortura, assassinato e desaparecimento de opositores políticos.
Como afirma o Ministro Eros Grau no seu voto:
“a anistia da lei de 1979 foi reafirmada, no texto da EC 26/85, pelo Poder Constituinte da Constituição de 1988. […] Por isso não tem sentido questionar se a anistia, tal como definida pela lei, foi ou não recebida pela Constituição de 1988. […] A Emenda Constitucional n. 26/85 inaugura a nova ordem constitucional. […] Daí que a reafirmação da anistia da lei de 1979 já não pertence à ordem decaída. Está integrada na nova ordem. […] Afirmada a integração da anistia de 1979 na nova ordem constitucional, teremos que sua adequação à Constituição de 1988 resulta inquestionável.” (p. 69-70)
Ora, em 1985 a Assembleia Nacional Constituinte – que de fato inaugura a “nova ordem constitucional” – sequer havia sido eleita!
Como pode uma emenda à “constituição” espúria da ditadura militar inaugurar o novo ordenamento jurídico democrático do país?
Sem esquecer que, com a promulgação da Constituição Cidadã de 1988, a “ordem” jurídica da ditadura foi extirpada, assim como sua emenda nº 26…
Por tudo isso, é insustentável a atual interpretação do STF – que defende a anistia aos crimes de sequestro, tortura, assassinato e desaparecimento de opositores políticos, pela ação de agentes da ditadura militar – e ela precisa alterada o quanto antes!