Diante da comoção internacional causada pelo massacre de Sabra e Chatila, o Estado sionista recorreu a um velho expediente de regimes genocidas: forjar uma “investigação” interna que não punisse ninguém, limitasse os danos à sua imagem e protegesse seus principais dirigentes. Foi nesse contexto que surgiu a chamada Comissão Kahan — uma iniciativa fraudulenta criada em setembro de 1982 para responder à pressão internacional e ao maior protesto já realizado na história de “Israel”, que levou 400 mil pessoas às ruas de Telavive contra o envolvimento direto do governo na matança.

O objetivo da comissão, comandada pelo presidente da Suprema Corte Yitzhak Kahan, era claro desde sua origem: livrar o alto comando militar e político de “Israel” da responsabilidade por um crime que estava sendo exposto como genocídio. E a manobra funcionou. O relatório final, publicado em fevereiro de 1983, construiu uma narrativa de “responsabilidade indireta”, absolvendo o exército sionista das acusações de cumplicidade direta com a chacina que vitimou mais de 3 mil civis palestinos desarmados nos campos de Sabra e Chatila, entre os dias 16 e 18 de setembro de 1982.

A manobra jurídica

A comissão era composta, além de Yitzhak Kahan, por Aharon Barak — também juiz da Suprema Corte — e pelo general da reserva Yona Efrat. Os três formavam um corpo judiciário-militar vinculado diretamente ao próprio regime que se propunha a investigar, o que por si só já comprometia toda a “isenção” da investigação. Durante quatro meses, recolheram testemunhos e documentos para apresentar um parecer que equilibrasse dois elementos contraditórios: a necessidade de responder ao clamor internacional e a preservação do aparato político e militar responsável pela invasão do Líbano.

No relatório, a comissão reconheceu que os falangistas cristãos — milícias fascistas aliadas de “Israel” — foram os autores do massacre. Porém, a entrada desses grupos nos campos, armados com pistolas, facas e machados, havia sido autorizada por oficiais sionistas de alta patente: o general Amir Drori deu o aval imediato, enquanto o chefe do Estado-Maior Rafael Eitan e o ministro da Defesa Ariel Sharon endossaram formalmente a operação.

Mesmo diante disso, a comissão optou por declarar que “Israel” teve apenas envolvimento “indireto”, alegando que o Estado não previu que os falangistas cometeriam tais crimes e que, ao perceberem o massacre, os oficiais sionistas não agiram com rapidez suficiente para detê-los. Essa “negligência”, e não a cumplicidade, foi o eixo da responsabilização apresentada.

Ariel Sharon: o bode expiatório

A única figura diretamente atingida pelas conclusões da Comissão Kahan foi Ariel Sharon. O relatório afirmou que ele “carregava responsabilidade pessoal” por não ter previsto o massacre e por não tomar medidas adequadas para evitá-lo.

A recomendação foi que Sharon fosse afastado do Ministério da Defesa — algo que o premiê Menachem Begin se recusou a fazer de imediato. Apenas após nova onda de protestos, e o assassinato de um ativista durante uma manifestação pacífica, Sharon foi retirado do posto. Mesmo assim, permaneceu no governo como ministro sem pasta, evidenciando o caráter simbólico da punição.

Nenhum outro oficial foi punido. O chefe do Estado-Maior Eitan, o chefe da inteligência Yehoshua Saguy, o comandante da divisão Amos Yaron, entre outros diretamente envolvidos na operação, foram citados apenas como negligentes.

O relatório nem sequer mencionou nominalmente o diretor do Mossad. Partes do texto referentes aos serviços secretos foram censuradas sob alegação de segurança nacional. Nenhuma recomendação concreta foi feita em relação a esses personagens.

A reação internacional e o controle da imagem

A função principal da Comissão Kahan era política: conter a crise de imagem que ameaçava o regime sionista após a exposição dos crimes cometidos no Líbano. A chacina de Sabra e Chatila escancarou para o mundo o papel de “Israel” como força de ocupação que operava em coordenação com grupos fascistas para eliminar fisicamente os palestinos. O exército sionista cercou os campos, forneceu sinalizadores para as milícias operarem à noite, impediu a fuga dos civis e manteve vigilância constante com rádios e binóculos durante os três dias de carnificina.

Mesmo com esse nível de envolvimento, o relatório final limitou a culpa a “falhas de julgamento”. Como esperado, a operação de propaganda funcionou. A imprensa imperialista elogiou o suposto “espírito democrático” de “Israel” por investigar a si próprio — algo que os próprios autores do relatório previram, afirmando que “não esperavam convencer quem já tinha má vontade”, mas sim “as pessoas de boa-fé”.

O resultado prático foi a completa impunidade. O Estado sionista, ao “punir” simbolicamente Sharon, conseguiu evitar qualquer responsabilização real. A ONU não tomou nenhuma medida concreta, e países como os Estados Unidos seguiram fornecendo armamentos e apoio político irrestrito ao regime.

A tentativa posterior, por parte de sobreviventes do massacre, de processar Sharon por crimes de guerra na Bélgica, também foi frustrada: o tribunal declarou-se incompetente por questões técnicas, e o caso foi arquivado. Pouco antes de prestar depoimento, Elie Hobeika — chefe das milícias falangistas e executor da chacina — foi assassinado, num típico caso de queima de arquivo.

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Last Update: 20/06/2025