Enquanto os Estados Unidos, sob a liderança do presidente Donald Trump, decidem se vão entrar numa nova guerra no Oriente Médio, o que certamente implicaria em gastos extras de centenas de bilhões, quiçá trilhões de dólares, vale a pena checar se os EUA têm essa bala na agulha para bancar tantos gastos militares.

A dívida pública americana está em um patamar altíssimo, ultrapassando os 36,2 trilhões de dólares em maio de 2025, e cresce a uma taxa preocupante. Só em 2024, o governo americano aumentou sua dívida em cerca de 1,5 trilhão de dólares, o que dá uma média de mais de 125 bilhões de dólares por mês. Isso significa que o país está pegando dinheiro emprestado a um ritmo acelerado para cobrir seus gastos, incluindo os militares.

Mas como o governo dos EUA consegue esse dinheiro? A resposta está nos títulos do Tesouro americano, que são como empréstimos que o governo toma de investidores, tanto americanos quanto estrangeiros. Quando você compra um título do Tesouro, está emprestando dinheiro para o governo, que promete pagar de volta com juros.

Por exemplo, se você investir 10 mil dólares em um título do Tesouro americano hoje, com um rendimento anual de cerca de 4,4%, você vai ganhar aproximadamente 440 dólares por ano em juros. Esses juros são pagos duas vezes por ano, ou seja, você recebe cerca de 220 dólares a cada seis meses. Se dividirmos isso por mês, dá cerca de 36 dólares por mês. Dez anos atrás, o rendimento era bem menor, cerca de 2,4% ao ano, o que significava ganhar só 240 dólares por ano, ou 20 dólares por mês.

Esse aumento no rendimento dos títulos mostra que o governo americano está tendo que pagar mais para atrair investidores, porque a demanda por esses títulos diminuiu, especialmente de grandes compradores estrangeiros como a China e o Japão. Ou seja, para o investidor, é um bom negócio, mas para o governo, é um sinal de que financiar a dívida está ficando mais caro.

A ameaça iraniana: um adversário bem diferente

Quando Trump menciona uma possível guerra no Oriente Médio, especificamente contra o Irã, é importante dimensionar o que isso significaria em termos de custos. O Irã não é o Afeganistão. Enquanto o país centro-asiático tinha cerca de 32 milhões de habitantes quando foi invadido em 2001, o Irã possui hoje aproximadamente 89 milhões de pessoas, quase três vezes mais.

Mais importante ainda é a diferença em capacidade militar. O Afeganistão era um país devastado por décadas de guerra civil, com forças armadas fragmentadas e equipamentos obsoletos. O Irã, por outro lado, possui a 16ª maior força militar do mundo, com 610 mil militares ativos – as maiores forças armadas do Oriente Médio em termos de tropas ativas. O país desenvolveu um dos arsenais de mísseis mais diversificados da região, incluindo mísseis como o Sejjil, com alcance de 2.000 quilômetros.

Se os Estados Unidos gastaram 2,2 trilhões de dólares para ocupar o Afeganistão por 20 anos – um país pobre, com defesas precárias e população menor -, imagine os custos de uma guerra contra o Irã, uma potência regional com capacidade militar sofisticada, território três vezes maior e população quase três vezes superior. Os números seriam astronômicos.

O peso das guerras no orçamento americano

Para entender a dimensão do problema fiscal americano, é preciso olhar para onde foram parar trilhões de dólares nas últimas duas décadas. Desde 2001, os Estados Unidos gastaram mais de 8 trilhões de dólares na chamada “Guerra ao Terror”, um montante que poderia ter transformado completamente a infraestrutura do país.

A guerra no Iraque custou cerca de 1,7 trilhão de dólares aos cofres americanos. No Afeganistão, foram mais de 2,2 trilhões de dólares em 20 anos de ocupação militar. Até mesmo a intervenção na Líbia, considerada uma operação menor, custou 550 milhões de dólares apenas nos primeiros meses, com gastos diários de 4 milhões de dólares.

Esses números ganham ainda mais relevância quando comparados aos investimentos que poderiam ter sido feitos em infraestrutura, educação e tecnologia. Enquanto os americanos gastavam trilhões destruindo países no Oriente Médio, a China investia na construção de seu próprio futuro.

O orçamento militar: uma máquina de guerra cara

O orçamento militar americano para 2025 atingiu a marca histórica de 1 trilhão de dólares, um aumento de 13% em relação ao ano anterior. Para 2026, Trump propõe elevar esse valor para 1,01 trilhão de dólares. Esses números fazem dos Estados Unidos o maior gastador militar do mundo, representando mais da metade de todos os gastos militares globais.

Em contraste, a China, segunda maior potência militar mundial, anunciou um orçamento de defesa de 245,6 bilhões de dólares para 2025, representando um aumento de 7,2% em relação ao ano anterior. Ou seja, os Estados Unidos gastam mais de quatro vezes o que a China investe em defesa.

Essa diferença se torna ainda mais gritante quando analisamos o déficit orçamentário americano. Nos primeiros cinco meses do ano fiscal de 2025, o déficit atingiu um recorde de 1,147 trilhão de dólares. O país enfrenta um déficit de 6,3% do PIB, e as projeções indicam que a dívida federal saltará de 98% do PIB em 2024 para 134% em 2035.

A China, por sua vez, estabeleceu uma meta de déficit orçamentário de 4% do PIB para 2025 – considerado recorde para os padrões chineses. Embora menor que o déficit americano, representa um aumento significativo em relação aos 3% de 2024. A dívida pública chinesa também cresceu, atingindo 88,3% do PIB. Ambos os países enfrentam desafios fiscais, mas em magnitudes diferentes.

Diferentes prioridades de investimento

Enquanto Washington concentra recursos em gastos militares, Pequim tem priorizado investimentos em infraestrutura. A China possui hoje a maior rede ferroviária de alta velocidade do mundo, com 48 mil quilômetros em operação, e planeja expandir para 60 mil quilômetros até 2030.

O investimento chinês em infraestrutura ferroviária é significativo. Só em 2025, o país investirá 590 bilhões de yuans (cerca de 82 bilhões de dólares) em ativos fixos ferroviários. Nos últimos cinco anos, a China gastou mais de 500 bilhões de dólares em novos trilhos, trens e estações. Contudo, críticos apontam que muitas dessas linhas operam com baixa ocupação e geram prejuízos operacionais.

Para colocar isso em perspectiva, os Estados Unidos praticamente não possuem rede ferroviária de alta velocidade. O Acela Express, que liga Boston a Washington, é a única linha que pode ser considerada de alta velocidade no país, mas opera em trilhos convencionais adaptados. Enquanto a China conecta suas cidades com trens que atingem 350 km/h, os americanos dependem de um sistema ferroviário obsoleto.

Sistemas educacionais e de saúde: modelos distintos

A diferença entre os dois países se estende aos sistemas educacional e de saúde. A China oferece educação obrigatória e gratuita por nove anos, garantida pela Constituição chinesa. O ensino superior, embora não seja totalmente gratuito, conta com programas de bolsas governamentais e universidades públicas financiadas pelo Estado. Porém, o sistema educacional chinês enfrenta críticas por sua rigidez e pressão excessiva sobre os estudantes.

Os Estados Unidos, por outro lado, não possuem sistema universal de saúde nem ensino superior gratuito. Mesmo as universidades públicas americanas cobram mensalidades, criando uma barreira de acesso que endivida milhões de estudantes. Trump tem questionado o financiamento de grandes universidades, propondo cortes em algumas instituições.

Na área da saúde, os contrastes são evidentes. A China desenvolve um sistema público de saúde, embora ainda com limitações de cobertura e qualidade em áreas rurais. Os Estados Unidos mantêm um modelo predominantemente privatizado que, apesar de oferecer tecnologia avançada, deixa milhões sem cobertura adequada devido aos altos custos.

A manufatura mundial: China lidera, EUA perdem espaço

Os números da manufatura mundial revelam uma mudança geopolítica fundamental. A China responde por aproximadamente 31,8% da produção manufatureira global, consolidando-se como a “fábrica do mundo”. Os Estados Unidos, que já foram a potência industrial dominante, veem sua participação na manufatura mundial cair para 15,1% – menos da metade da participação chinesa.

Essa transformação não é acidental. Enquanto os americanos desindustrializavam sua economia em favor do setor financeiro, a China implementou o plano “Made in China 2025”, visando dominar setores industriais avançados e alcançar 70% de participação em tecnologias estratégicas.

O financiamento da dívida: sinais de alerta

A estrutura de financiamento da dívida americana mostra sinais preocupantes. Do total de 36,2 trilhões de dólares em dívida pública, cerca de 9 trilhões (25%) estão em mãos estrangeiras. O Japão é o maior credor estrangeiro, com 1,13 trilhão de dólares, seguido pelo Reino Unido (807,7 bilhões) e China (757,2 bilhões).

Significativamente, a China reduziu sua participação em títulos americanos em mais de 27% entre 2022 e 2024, caindo da primeira para a terceira posição entre os credores estrangeiros. Essa redução faz parte de uma estratégia chinesa de diversificação de investimentos e redução da dependência do dólar americano.

O processo de desdolarização, ou seja, de emancipação do mundo da ditadura do dólar, segue seu curso inexonável. Acordos como o swap de moedas entre Brasil e China, assinado em maio de 2025 no valor de 157 bilhões de reais, fortalecem moedas alternativas e reduzem a demanda por títulos americanos.

O futuro da hegemonia americana

Com tantos gastos militares no horizonte e uma dívida pública crescendo rapidamente, fica a pergunta: será que o Tio Sam ainda tem essa bola toda para continuar bancando tudo isso? A resposta não é simples, mas o cenário atual mostra que o governo americano enfrenta desafios sérios para manter sua hegemonia financeira e militar.

Enquanto os Estados Unidos se preparam para possíveis novos conflitos militares, a China tem focado mais em desenvolvimento interno e tecnológico. Contudo, ambos os países enfrentam seus próprios desafios: os EUA com déficits crescentes e a China com uma economia desacelerando e problemas de endividamento corporativo.

A dívida americana não é apenas um número em uma planilha. É um reflexo de escolhas políticas que priorizaram gastos militares em detrimento de investimentos em infraestrutura doméstica. Essas escolhas têm consequências tanto fiscais quanto geopolíticas.

O Tio Sam ainda tem recursos consideráveis, mas sua margem de manobra fiscal está se estreitando. Na geopolítica moderna, a sustentabilidade financeira é tão importante quanto o poder militar.

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Last Update: 19/06/2025