A Infância no Labirinto da Inteligência Artificial: Uma Urgência Ética e Política
Por Maria Cláudia D’Arcadia*
Vivemos tempos em que a infância, esse território sagrado do vir a ser, se vê atravessada por forças que escapam à sua compreensão e ao seu controle. A Inteligência Artificial, expressão máxima da racionalidade técnico-científica contemporânea , adentrou o cotidiano das crianças e adolescentes sem que o país, a escola ou a família estivessem minimamente preparados para mediar seus impactos.
O que começou como uma ferramenta de apoio, rapidamente se converteu em atalho. As primeiras fissuras aparecem na supressão do esforço intelectual: estudantes recorrem a mecanismos automatizados para realizar tarefas escolares, substituindo o processo de formação pelo consumo de respostas prontas.
A escola, que deveria ser espaço da dúvida, da pesquisa e da construção do pensamento, é silenciada por um algoritmo que entrega certezas estéreis. Forma-se, assim, uma pedagogia do comodismo : filha direta da lógica neoliberal que valoriza o resultado e despreza o percurso.
Mas o fenômeno é mais profundo e mais perverso. A mesma IA que responde a uma questão de história também é capaz de gerar imagens falsas, vídeos simulados e conteúdos de teor vexatório ou sexualizados — muitas vezes utilizando o rosto de colegas, professores, conhecidos. O que era, antes, a imaginação do mal, hoje ganha forma digital, pública e irreversível.
Trata-se de uma nova arquitetura da violência, onde o agressor é frequentemente uma criança, e a vítima também. A ética se dissolve no anonimato das telas. A noção de responsabilidade se esvai diante da ilusão de que tudo é permitido no universo virtual. O corpo da vítima, manipulado e exposto, é tornado mercadoria imagética, símbolo da espetacularização da crueldade.
Aqui, a crítica que se impõe é que não estamos diante de um problema apenas moral ou disciplinar. Estamos diante de uma falência civilizatória. Um Estado que não regula o uso de tecnologias entre menores de idade; uma escola que não compreende a profundidade das transformações tecnológicas; uma família que delega ao celular o papel de cuidador e, na verdade, todos são peças de uma engrenagem que sacrifica a infância no altar da eficiência técnica.
É urgente convocar o debate público sobre a regulação da internet, a mediação do uso da IA e a preservação da infância como direito fundamental. O Brasil precisa formular políticas públicas que não sejam apenas punitivas, mas educativas, preventivas e profundamente comprometidas com a dignidade humana. O uso de imagens de crianças para fins vexatórios ou de exploração sexual não é apenas um delito: é uma ofensa à própria ideia de humanidade.
A infância não pode ser o campo de experimentação dos interesses do mercado nem o laboratório do descaso institucional. A infância é projeto de futuro. Proteger nossas crianças é resistir.
Enquanto não entendermos que o avanço tecnológico precisa estar submetido à ética, à justiça social e à responsabilidade coletiva, seguiremos criando gerações com acesso ao mundo, mas sem ferramentas para habitá-lo com dignidade e cuidado.
*Maria Cláudia D’Arcadia é advogada e cientista Social
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