A cada ano, o Carnaval brasileiro se transforma em um espetáculo mais vibrante, um forte símbolo cultural. Porém, por trás dessa celebração, esconde-se uma ameaça ambiental silenciosa: os abadás de poliéster. Produzidos em massa para uso único, esses trajes são descartados logo após os desfiles e têm contribuído, cada vez mais, com a poluição têxtil.
Trata-se de um sistema linear, caro para o planeta e, no fim das contas, para todos nós. Um modelo que caminha na contramão do novo Plano Nacional de Economia Circular, assinado pelo atual presidente do Brasil em maio de 2024.
Em 2025, somente no Carnaval de Salvador (BA), uma pesquisa interna do Fashion Revolution Brasil estimou que foram produzidos aproximadamente 326 mil abadás, a maioria feita de poliéster. Mas mesmo esse número pode estar equivocado: Loyola Neto, CEO da Loygus, uma fábrica de confecção de abadás, afirma ser produzido muito mais do que isso. O problema é que a cadeia de produção ainda carece de relatórios oficiais que garantam transparência, o que indica que o impacto pode ser ainda mais grave do que se imagina.
Essa quantidade de poliéster lança no meio ambiente cerca de 46 toneladas de tecido plástico, resultado de um produto com ciclo de vida de apenas algumas horas.
O poliéster, fibra sintética derivada do petróleo, é amplamente utilizado na confecção de abadás devido ao seu baixo custo e à sua facilidade de produção. No entanto, sua decomposição pode levar de 200 a 400 anos, liberando microplásticos que contaminam solos e oceanos.
Em meio à crise climática e a tantos impactos ambientais com que a indústria da moda contribui, está evidente que os abadás de poliéster do Carnaval representam um enorme resíduo têxtil gerado no Brasil, que precisa ser urgentemente colocado sob os holofotes, junto com a pauta de resíduos têxteis nacionais.
Os principais responsáveis por esse cenário são os blocos, camarotes e trios elétricos, bem como seus patrocinadores, que financiam essas estruturas investindo milhões em ações promocionais durante o Carnaval, mas pouco fazem para mitigar os impactos ambientais de suas atividades. As poucas iniciativas sustentáveis até hoje foram ações pontuais da iniciativa privada, como o Camarote 2222, em 2025, ou da sociedade civil, como o projeto Refoliar, que recolheu uma tonelada e meia de abadás usados e pretende transformá-los em mochilas escolares para doação na rede pública de ensino.
Da história ao impacto ambiental
Historicamente, o abadá passou por transformações. Nos anos 1970, as fantasias dos blocos foram substituídas por mortalhas de algodão, presentes até hoje nos blocos afro. Já nos anos 1990, o abadá moderno surgiu redesenhado por nomes como Pedrinho da Rocha, Durval Lelys e o Bloco Eva. Hoje, essa peça se tornou símbolo de pertencimento e uma chave de acesso à festa. No entanto, o que antes era feito de algodão e poderia virar almofada ou toalha de mesa, agora é quase sempre um produto sintético, de uso único, feito para ser descartado.
É preciso fazer com que essa peça tão popular nos carnavais do Brasil todo seja redesenhada, para que ela volte a refletir a diversidade, a cultura e a responsabilidade socioambiental.
A mobilização civil pode mudar essa lógica de produção, consumo e descarte
Em 24 de abril, Salvador foi palco de um importante debate promovido pela Semana Fashion Revolution, com apoio da Secretaria Municipal de Sustentabilidade, Resiliência, Bem-Estar e Proteção Animal (SECIS): o “Laje Talks: o impacto dos abadás como resíduos têxteis do Carnaval”.
Foi a primeira oportunidade de reunir diferentes elos dessa cadeia, desde quem lida com resíduos sólidos na cidade e produtores de abadás, até empreendedores da moda circular, costureiras, designers e representantes de projetos sociais.
Durante a conversa, alguns desafios se repetiram: a logística de recolhimento e armazenamento dos abadás (a exemplo do projeto Refoliar, que, com apenas 20 urnas, arrecadou 1,5 tonelada de abadás usados em um único Carnaval, atualmente estocados com apoio voluntário da Sotero Ambiental); a dificuldade de remunerar de forma justa quem trabalha com upcycling; a escassez de verba para capacitar costureiras; e o preconceito do consumidor com produtos feitos a partir de resíduos. Mesmo compreendendo que essas medidas são paliativas, o que realmente precisamos é atacar a raiz do problema: parar de gerar esse tipo de resíduo.
O maior desafio identificado no debate, contudo, foi a falta de poder real dos atores presentes para impedir a produção em larga escala de abadás de poliéster. A Secretaria do Meio Ambiente de Salvador, apesar do comprometimento visível, possui poucas ferramentas legais ou políticas para intervir em um sistema fortemente ligado à indústria do entretenimento e ao turismo, e não à gestão ambiental.
Esse conjunto de obstáculos deixa claro que a questão dos abadás não é apenas ambiental: é sistêmica, política, cultural e financeira.
No entanto, para que mudanças significativas ocorram, é preciso transformar essas discussões em ações concretas e abrangentes. O Carnaval é uma expressão cultural de grande importância para o Brasil, mas não pode continuar sendo uma festa à custa do meio ambiente.
É preciso agir com urgência: afinal, não adianta criar soluções se a torneira continua aberta. Precisamos fechar essa torneira enquanto ainda enxugamos o chão alagado. É hora de repensar práticas e exigir responsabilidade ambiental de todos os envolvidos na realização desse evento.
Mudar esse cenário exige também mobilização coletiva da sociedade civil para pressionar tanto o poder público quanto o setor privado. A partir do mote “Pensar global, agir local”, é fundamental estabelecer políticas públicas que incentivem a produção de abadás com materiais sustentáveis e circulares, bem como implementar sistemas eficazes de coleta e reúso.
Também é essencial investir em pesquisa e estruturas para reciclagem desses resíduos têxteis. Os patrocinadores, por sua vez, devem ser responsabilizados e cobrar de seus parceiros práticas mais ecológicas e circulares em suas ações promocionais.