O mapa religioso do Brasil e o avanço do fanatismo

por Dora Incontri

Corre nas redes um vídeo assustador. 1.500 jovens na Universidade Federal de Minas Gerais, uma das melhores do país, reunidos num culto evangélico, dentro do espaço universitário. Hinos, batismos, conversões, “milagres”, centenas de alunos de joelhos, “pedindo perdão pelos pecados da universidade brasileira”. A cena me lembrou um livro que uso em minhas aulas sobre a história do cristianismo: Cristianismo e paganismo, 350-750 – A conversão da Europa ocidental.  Ou ainda o filme Alexandria (2009), dirigido por Alejandro Amenábar, que conta a história da filósofa e astrônoma Hipátia, que costumo passar ou indicar para meus alunos. As duas fontes mostram como o cristianismo – leia-se o catolicismo – foi imposto a ferro e fogo, muitas vezes numa histeria coletiva, depois que o Imperador romano Constantino o adotou como religião (e mais especificamente o catolicismo, porque havia inúmeras denominações cristãs na época, por exemplo o arianismo, o pelagianismo, o montanismo, o marcionismo e dezenas de outras, todas declaradas heréticas pela Igreja Romana e que passaram a ser perseguidas, tanto quanto os cultos do paganismo).

Desde então, o cristianismo, na versão católica, foi avançando mundo afora. O livro conta como multidões se entregavam ao batismo coletivo, penitentes dos pecados pagãos, e como templos, bibliotecas, lugares de ensino do mundo greco-romano foram sendo literalmente destruídos. Só para citar dois exemplos, a biblioteca de Alexandria foi em parte destruída por fanáticos cristãos (na mesma época em que martirizaram Hipátia) e a conversão da Alemanha ao cristianismo foi arrematada com a queda a machadas de um templo de Tor, liderada por São Bonifácio, por volta do ano 800.

Então… sabemos para onde nos levou esse movimento de tomada de poder pela igreja, com um cristianismo que pouco tinha a ver com o mestre Nazareno, exemplo de fraternidade, serviço ao próximo e compaixão.

É a ameaça que sofremos atualmente, da civilização ocidental ser assaltada por uma histeria cristã fundamentalista, coletiva, fanática, que destrói outras religiões, que submete a massa a uma manipulação de sujeição e que arrasa com a arte, com a ciência, com a liberdade de pensamento e com a nossa esperança de um mundo igualitário, fraterno e fundante do Reino que Jesus queria implantar. Ou, dito de outra forma, de uma sociedade socialista, como tantos sonharam e pela qual lutaram até hoje. Eu prefiro refinar ainda o conceito e falar em uma sociedade anarco-socialista.

Podemos agora comentar sobre o censo do IBGE, que trouxe algumas pequenas novidades em relação ao mapa das religiões no Brasil. Não poderia deixar de fazer algumas leituras a respeito, já que essa coluna trata de espiritualidade, como um dos seus eixos temáticos.

A primeira constatação que já vem há pelo menos 5 décadas é o recuo dos católicos e o aumento dos evangélicos. E essa cena na Universidade Federal de Minas Gerais é o efeito concreto desse avanço. Diga-se, entre parênteses, que essa progressão não é majoritariamente dos setores mais tradicionais do protestantismo, mas sim dos pentecostais e neopentecostais. A novidade é que nesse censo publicado agora em 2025 e que traz os dados de 2022, os evangélicos (26,9%) cresceram com menos velocidade. Católicos (56,7%) continuam caindo, espíritas (1,8%) (sempre colocados em terceiro lugar entre as religiões no Brasil), decaíram ligeiramente. Digno de nota é o aumento percentual de adeptos de religiões afro-brasileiras (1%) e de pessoas sem religião (9,3%) (que engloba ateus, agnósticos, mas cuja predominância parece ser de pessoas – jovens – com uma espiritualidade livre, difusa, não aderente a uma religião em particular).

Algumas considerações: sabemos que há um projeto, ligado a uma “teologia de domínio”, importada dos EUA, que está em pleno vigor no governo atual do império do norte, mas que já vem sendo amarrada há décadas. É um avanço agressivo de setores hiper conservadores de evangélicos e católicos (por exemplo, o vice de Trump, J.D. Vance, é um desses católicos radicais) que pretendem resgatar valores tradicionais cristãos, como agendas patriarcais, antifeministas, contra direitos humanos, contra pautas LGBTQI+, contra lutas antirracistas e sobretudo contra tudo que é de esquerda, em completo alinhamento com um projeto neoliberal e de extrema direita. 

Assim, o desaceleramento do crescimento evangélico entre nós é uma meia boa notícia, pois seus adeptos continuam crescendo de qualquer forma, mas o pior é que estão avançando os sinais para minar completamente o Estado laico, a escola pública laica e agora até as universidades públicas, onde não deveria haver qualquer movimento religioso, muito menos dessa forma invasiva e fanática.

Por outro lado – não encontrei informações estatísticas sobre isso – dentro do catolicismo (ainda em declínio), há hoje um reavivamento de setores também radicais, que oraram pela morte do Papa Francisco e fazem pregações misóginas e contra todas as pautas progressistas, marcando um território em comum com os evangélicos conservadores.

Duas boas novidades, que aponto neste novo censo: o avanço dos afro-brasileiros e os dos sem religião. O primeiro caso, me parece, se deve a um processo recente de identificação cultural e ancestral com as raízes afro, coisa que era muito reprimida anteriormente. Embora, ainda muitos adeptos dessas religiões sejam brancos e a maior contingência de negros se encontre entre os evangélicos. O segundo caso indica um desejo de espiritualidade mais livre, menos institucional por parte das novas gerações, fato que já analisei aqui em outro artigo (https://jornalggn.com.br/cidadania/kardec-e-uma-espiritualidade-livre-por-dora-incontri/).

Entretanto, do que tenho sido cobrada, desde que saiu o resultado do censo em relação às religiões, é que me pronuncie sobre o leve declínio dos espíritas. Tenho algumas hipóteses explicativas para esse dado. 1) a migração de espíritas para religiões afro (conheço pessoalmente vários), sobretudo para a Umbanda, por conta da maior liberdade de participação no fenômeno mediúnico (usando um termo kardecista). 2) o enrijecimento institucionalista e dogmático do movimento espírita hegemônico, liderado pela Federação Espírita Brasileira e seus seguidores, afastando jovens e pessoas de senso crítico. 3) a adoção de grande parte do movimento (esse mesmo hegemônico) a pautas de direita e extrema direita. Muita gente foi expulsa ou saiu espontaneamente dos centros espíritas, que apoiaram de maneira explícita a barbárie bolsonarista. 4) o abafamento da mediunidade, que constitui o cerne do espiritismo de Kardec, com imposições que acabam por tornar a prática espírita uma coisa sem experiências espirituais vivas, que são fonte de convicção.

Há um movimento espírita progressista, que tem avançado nos últimos anos, tecendo reflexões e lançado iniciativas para retomar o que, a nosso ver, pode ser uma revivescência do espiritismo genuíno, dinâmico e crítico como proposto por Kardec. E esse movimento, de qualquer maneira, está mais perto desses que querem uma espiritualidade livre (mas também crítica) do que os que seguem setores radicais e dogmáticos das religiões tradicionais.

Dora Incontri – Graduada em Jornalismo pela Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero. Mestre e doutora em História e Filosofia da Educação pela USP (Universidade de São Paulo). Pós-doutora em Filosofia da Educação pela USP. Coordenadora geral da Associação Brasileira de Pedagogia Espírita e do Pampédia Educação. Diretora da Editora Comenius. Coordena a Universidade Livre Pamédia. Mais de trinta livros publicados com o tema de educação, espiritualidade, filosofia e espiritismo, pela Editora Comenius, Ática, Scipione, entre outros.

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Last Update: 18/06/2025