Explosão nuclear forma cogumelo de fogo no céu – Foto: Reprodução

Por Washington Araújo

Quando o mundo mais precisa de juízo, basta um erro técnico, um gesto mal interpretado ou um silêncio no rádio para nos empurrar rumo à extinção. A próxima guerra nuclear talvez não venha por decisão — mas por acidente.

O acaso no gatilho humano

A imagem clássica da guerra nuclear é cinematográfica: botões vermelhos, salas de comando subterrâneas, ordens frias transmitidas por canais criptografados. Mas o que realmente ameaça o planeta não é o cálculo meticuloso — é o erro não planejado. A detonação do mundo pode ser o resultado de um gesto distraído, de um chip queimado, de uma fita inserida no sistema errado.

Durante a Guerra Fria, Estados Unidos e União Soviética viveram uma rotina de falsos alarmes. Em 1979, uma fita de simulação foi colocada por engano no sistema NORAD, gerando o que parecia ser um ataque nuclear massivo da antiga URSS. Aeronaves foram preparadas, as ordens de retaliação estavam a segundos de ser dadas. O mundo ficou a um triz do silêncio eterno — por um erro de gravação.

Meses depois, foi a vez de um simples chip de computador corrompido fazer os sistemas americanos enxergarem mais de 2.000 mísseis lançados em sua direção. A falha, invisível e minúscula, quase se converteu em tragédia irreversível.

Do lado soviético, em 1983, Stanislav Petrov salvou o planeta ao desobedecer o protocolo. Os satélites indicavam o lançamento de um míssil dos EUA. Petrov, oficial de plantão, usou o que restava de sua fé na lógica humana e decidiu não retaliar. Seu ceticismo evitou a Terceira Guerra Mundial.

Stanislav Petrov, o oficial soviético que evitou uma guerra nuclear em 1983 ao decidir não retaliar após um falso alarme de ataque dos EUA – Foto: Reprodução

Essas histórias são reais. E cada uma delas carrega o mesmo ensinamento: o fim da civilização pode não vir por maldade, mas por um engano de segundos. A guerra nuclear é como uma máquina de matar embutida no nosso cotidiano, que espera apenas um tropeço para se ativar.

Colisões invisíveis e drones sem rosto

Não é apenas o erro técnico que ameaça. É o ruído do mundo, o excesso de atores, a opacidade dos sistemas e a vertigem dos novos conflitos.

Em 2009, dois submarinos nucleares — o francês Le Triomphant e o britânico HMS Vanguard — colidiram no vasto Atlântico. Ambos estavam equipados com mísseis capazes de destruir cidades inteiras. A colisão, absurda e improvável, ocorreu sem que nenhum dos lados soubesse da presença do outro. O oceano é grande demais para encontros desse tipo — e, ainda assim, eles se chocaram.

Imagine esse episódio durante um pico de tensão geopolítica. Um submarino desaparecido. Comunicações falhas. A suspeita de um ataque hostil. A retaliação poderia ser nuclear — e irreversível.

Casos semelhantes ocorrem com frequência perturbadora. Em 1993, o submarino americano USS Grayling colidiu com um submarino russo portando dezenas de ogivas. Em 2022, a Índia lançou acidentalmente um míssil de cruzeiro BrahMos contra o Paquistão, que detectou o ataque, mas optou por não responder. Nenhuma explicação imediata veio do governo indiano. Silêncio. Angústia. A paz naquele dia foi salva não por protocolos, mas por contenção emocional.

A metáfora aqui é inquietante: o mundo vive com os dedos trêmulos sobre um teclado sensível, onde cada tecla pode ser confundida com a de um piano. Um piano que, ao invés de sons, emite explosões.

Na Polônia, ainda em 2022, dois civis morreram após o impacto de um míssil. Pensou-se por horas tratar-se de um ataque russo deliberado. A tensão era máxima. Depois descobriu-se: era um míssil ucraniano de defesa, desviado de seu trajeto.

Enquanto isso, satélites espiões são perseguidos por “bonecas russas” no espaço sideral, como se fossem peças em um tabuleiro onde os jogadores perderam o manual.

Satélites cegos e ogivas ambíguas

Estamos entrando numa era onde o inimigo talvez não seja outro país, mas a ausência de clareza. Armas convencionais e nucleares compartilham agora os mesmos vetores, plataformas e rotas. O espaço, antes símbolo de esperança, tornou-se novo campo de guerra.
Satélites com uso duplo — militar e civil — tornaram-se alvos prioritários. A Rússia já demonstrou capacidade de perseguição e potencial destruição desses equipamentos. A simples queda de um desses satélites pode ser interpretada como o início de um ataque nuclear. Não haverá tempo para perguntar — apenas para reagir.

Armas com “cabeça trocável”, como o míssil chinês DF-26, são outro exemplo. Ele pode carregar uma ogiva convencional ou uma nuclear, trocada em minutos. Se detectado em voo, como saber qual tipo de ogiva ele carrega? E, diante da dúvida, esperar seria correr o risco de ser o último a agir.

Míssil chinês DF-26, com capacidade de carregar ogiva convencional ou nuclear – Foto: Reprodução

A segunda metáfora impõe-se com crueza: vivemos como equilibristas num fio de arame invisível, estendido entre dois arranha-céus em chamas. A cada passo em falso, o chão não nos perdoará. E nesse fio, cada pássaro — ou drone — pode parecer um predador.

O uso de armamentos ambíguos pela Rússia na Ucrânia, como o míssil Oreshnik, e a falta de canais confiáveis de comunicação entre China e Estados Unidos tornam o cenário ainda mais frágil. Qualquer míssil, qualquer alerta de radar, qualquer ausência de sinal pode ser o estopim.

Uma janela para evitar o fim

A lição mais valiosa que a história recente nos oferece é clara: a prevenção deve ser tão concreta quanto a dissuasão. Comunicação constante, protocolos de desescalada e acordos de transparência são as ferramentas que seguram a civilização no fio da sobrevivência.

Durante a Guerra Fria, EUA e URSS desenvolveram sistemas robustos de contato direto, com linhas de emergência que cruzavam continentes. Oficiais de ambos os lados se comunicavam diariamente, informando exercícios militares, testes balísticos e anomalias técnicas. Esse canal salvou o mundo mais de uma vez. Hoje, essas linhas estão enferrujadas ou abandonadas.

Há ainda quem confie que a lógica da destruição mútua garantida — o velho MAD — continuará bastando. Mas essa lógica depende de algo que a tecnologia moderna já não oferece: tempo. A velocidade de mísseis hipersônicos, de torpedos nucleares submarinos e da inteligência artificial embarcada encurta os segundos entre um alerta e uma catástrofe.

Como garantir que uma IA não detecte erroneamente um “comportamento hostil” e acione sistemas automatizados de retaliação? Como assegurar que um presidente, acordado às três da manhã, não reaja por instinto a uma tela vermelha?

Mais do que políticas, precisamos de uma nova ética nuclear. Uma que compreenda que, diante do botão, não há vencedores. E que cada ogiva carrega não apenas megatons — mas futuros que nunca nascerão.

A ONU, os tratados bilaterais, os fóruns multilaterais precisam ser restaurados com urgência. O tempo que resta deve ser gasto em reconstruir confiança, transparência e mecanismos de verificação. Cada minuto sem isso é um jogo com o destino — e o relógio está adiantado.

O fim da humanidade talvez não se anuncie com discursos inflamados, mas com a ausência de um alarme. Pode não haver inimigo visível. Nem ato de guerra, no sentido tradicional. Apenas um erro técnico, uma falha de software, uma ordem não revista. E tudo estará consumado.

Hoje, com nove potências nucleares, arsenais prontos para disparo imediato e uma crescente desintegração das instituições multilaterais, vivemos à beira do abismo sem sequer saber quantos passos ainda restam.

Prevenir acidentes nucleares é mais urgente que qualquer corrida armamentista. Não basta preparar-se para a guerra. É preciso, sobretudo, desarmar o acaso.

Porque a maior ameaça não é o ódio — é a distração. E, no mundo nuclear, não há segunda chance para corrigir o que se acende por engano. E ainda é tempo de lembrar uma afirmação extremamente atual constante do documento “A promessa da paz mundial” onde se afirma que a paz não é somente possível, é inevitável.

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Last Update: 18/06/2025