Numa região onde são escassos os eventos representativos da expressão da cultura local, o Festival dos Povos da Floresta surge como um embrião para reverter esse quadro. A primeira cidade pela qual passou o projeto itinerante foi Porto Velho (RO), entre os dias 29 de maio e 8 de junho. Agora ele segue para outras cidades do Norte do País.

“Tem um senso comum que nos incomoda bastante: dizer que Rondônia não tem cultura”, diz Fabiana Barbosa Gomes, presidente da produtora Rioterra, com sede em Porto Velho e idealizadora do evento. “Com este acontecimento a gente quer mostrar a pluralidade e a riqueza do nosso estado.”

A ideia por trás do evento é apresentar a cultura dos que vivem na mata e também daqueles que são da cidade, mas cuja arte dialoga com a Floresta Amazônica. Ao longo de quatro dias, subiram ao palco montado no Parque da Cidade, grande área pública de lazer na Zona Leste da cidade, grupos indígenas, cantores e compositores do Norte e ainda músicos baseados no eixo Rio–São Paulo.

O objetivo da seleção foi, de acordo com a curadora Aline Moraes, promover o intercâmbio, “furando bolhas e conectando culturas”.

Para Reginaldo Arara, do povo Arara de Ji-Paraná (RO), vocalista de um dos grupos indígenas, a grande alegria de estar ali vinha do fato de poder dar visibilidade à arte de seu território.

Alexandre Zoro, presidente da Associação do Povo Zoro, que vive num território localizado no norte de Mato Grosso, e se apresentou no festival, observa que a visibilidade é importante não só para fora, mas para dentro. Os jovens indígenas, segundo ele, têm gradualmente se afastado de suas culturas.

“Um dos motivos é, justamente, não haver encontros como este”, diz Zoro. “Tinha mais de 20 anos que a gente não participava de um evento”, diz.

Erivaldo de Melo Trindade, o Bado, é o cantor e compositor de MPB mais conhecido de Rondônia. No festival, cantou ao lado de uma referência musical da Região Norte, o paraense Nilson Chaves, que tem projeção nacional. A obra de ambos é marcada por reflexões sobre a cultura amazônica.

“A gente acha que a nossa música tem força suficiente e identidade para se propagar pelo mundo, mas não conseguimos ser assimilados pela grande mídia”, afirma Bado. Chaves atrela o desinteresse do mercado pela cultura da região à própria natureza do que ali se produz. “Pensar faz mal para o País”, ironiza ele. “Mas o dia em que não tiver nada para dizer às pessoas, vou parar de compor.”

A cantora e compositora manauara Izabela Lima, há 15 anos vivendo em Porto Velho, faz uma MPB de traços amazônicos, com os batuques e melodias reproduzindo sons da natureza. Ela se diz inserida na música regional “beiradeira”, que trata em suas letras das tradições e vivências das comunidades situadas à beira dos rios que cortam a cidade.

Izabela afirma que, depois de anos de preconceito, começou-se a olhar para a dança e os costumes do beiradeiro: “É a nossa identidade”.

Coube a um grupo também beiradeiro o melhor show do festival: o Quilomboclada, que tocou músicas afro-indígenas no ritmo do hip-hop e uma apresentação teatral, que incluiu um artista percorrendo o palco com a cabeça do boi-bumbá e outros três representando uma serpente.

“A gente viveu por muito tempo um isolamento cultural. Por isso, nosso grande desafio é a gente se enxergar”, diz o cantor e letrista Bera

“A gente viveu por muito tempo um isolamento cultural. Por isso, nosso grande desafio é a gente se enxergar”, diz o vocalista e letrista Áquilas Bera. “O Quilomboclada tem mais de duas décadas de estrada. Nossas letras pregam a resistência. Devemos aprender com os povos originários e nos reconhecer neles.”

O samba local também teve espaço no festival. Ernesto Melo, chamado de ­“poeta da cidade”, mostrou-se um músico ligado às tradições, com ótimos sambas autorais exaltando a Amazônia. “Nosso samba pretende resgatar a nossa história sem ranço de quem vem de fora”, diz ele.

O músico local Bira Lourenço e a carioca Bianca Gismonti se apresentaram juntos num show que reuniu percussão orquestral de Bira, com vários instrumentos e elementos que geravam sons, como baldes com água e vasos, e o teclado espetacular da filha de Egberto Gismonti.­ Foi a primeira vez que tocaram juntos.

Filó Machado também fez show no festival. Com 60 anos de carreira e muitas turnês no exterior, nunca tinha se apresentado em Porto Velho. O mesmo ocorreu com Bianca Gismonti. Isso revela falta de espaço para determinados segmentos musicais na capital rondoniense.

Segundo Alexis Bastos, coordenador de projetos da Rioterra, o estado vive pautado na cultura do agronegócio, com as festas de peão e shows sertanejos frequentes de duplas conhecidas nacionalmente: “A gente queria mostrar que não tem só isso”.

Lenine, que fechou a programação, disse a CartaCapital que “a região sofre de invisibilidade cultural”. A presença de artistas de fora da cidade no festival foi viabilizada pelo patrocínio da Petrobras, via Lei Rouanet.

Além dos quatro dias de shows, o Festival dos Povos da Floresta contou com exposição de objetos e fotos da Amazônia, rodas de conversa e oficinas – tudo com foco na sensibilização e valorização da identidade da região.

Em agosto, o Festival dos Povos da Floresta plantará sua semente em Boa Vista (RR) e, em novembro, em Macapá (AP). Os organizadores desejam ainda levá-lo, em 2026, a Belém (PA) e Brasília (DF). •


*O jornalista viajou a convite do Festival dos Povos da Floresta.

Publicado na edição n° 1367 de CartaCapital, em 25 de junho de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Olhar para si’

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Last Update: 18/06/2025