O bruxo do Cosme Velho, Machado de Assis, teve sua obra completa publicada pela Todavia em 2023. Agora, a mesma editora começa a publicar a obra completa de outro escritor com epíteto digno de filme de terror: o “vampiro de Curitiba”, Dalton Trevisan.
Serão, ao todo, 37 livros, e os primeiros sete saem este mês como parte da comemoração do centenário do autor, www.cartacapital.com.br/cultura/dalton-trevisan-lendario-contista-brasileiro-morre-aos-99-anos/, aos 99 anos. Sua vida foi marcada sobretudo pela discrição, tanto que não concedia entrevistas nem compareceu à cerimônia para receber o Prêmio Camões, em 2012, com a desculpa, expressa por carta, de que sua idade, avançada, não lhe permitia a viagem: “Ai de mim”, escreveu, dramático.
Essa primeira leva traz aos leitores O Vampiro de Curitiba (1965), Chorinho Brejeiro (1981), Pão e Sangue (1988), Ah, é? (1994), Desgracida (2010) e O Beijo na Nuca (2014).
Segundo Fabiana Faversani, coordenadora da coleção, esses títulos foram os escolhidos por englobar todos os períodos de atividade do autor. “Temos produções mais recentes, que incluem correspondência e uma prosa mais poética; dos anos 1990, que foi muito radical com as mini-histórias; dos anos 1970 e 1980, com cenas interiores e a dramaticidade de diálogos; e o clássico Dalton, com O Vampiro de Curitiba”, detalha Faversani a CartaCapital.
Sai também agora a inédita antologia Educação Sentimental do Vampiro, organizada pelo dramaturgo Felipe Hirsch e pelo tradutor Caetano W. Galindo. Para definir a seleção, eles levaram em conta tanto suas preferências pessoais quanto as de Trevisan, conforme relatam no posfácio: “Pudemos contar com uma pequena lista de favoritos que ele elaborou especialmente para nós, quando soube deste projeto”.
O importante para o autor, que deixou mais de 700 contos, não era o que as palavras descrevem, e sim o que elas não dizem
Dado que Trevisan deixou o exorbitante número de mais de 700 contos, Educação Sentimental do Vampiro é um ótimo primeiro contato com sua escrita. São 77 contos, dispostos na ordem cronológica das primeiras edições, representando todas as fases por que passou o autor na longeva carreira. Por acaso, aliás, o primeiro conto da antologia (“Pedrinho”) e o último (“Flausi-Flausi”) coincidem com o primeiro conto do primeiro livro (Novelas Nada Exemplares, 1959) e o último conto do último livro (O Beijo na Nuca).
Já os leitores que conhecem, de outras primaveras, a literatura de Trevisan devem encontrar na antologia textos de sua predileção. Está presente no volume, por exemplo, “Meu pai, meu pai”, de A Trombeta do Anjo Vingador (1977). O conto, além de antecipar em parte o livro que será publicado em alguma das próximas levas, serve de metonímia para a obra completa de Trevisan, embora esteja longe de resumi-la.
“Meu pai, meu pai” narra um filho que, desde pequeno, vê o pai, alcoólatra, variando entre momentos de sobriedade e recaídas. Como a maestria de escrever contos pressupõe o minimalismo na escolha de palavras e a supressão de informações para que o não dito atue na imaginação dos leitores, o mestre Trevisan deixa tudo apenas sugerido. A repetição no título, junto a outros elementos no texto, sugere que o filho repetirá os passos do pai à medida que o tempo passa, por ironia do destino. Quando, no fim, o pai morre e o filho de fato se reconhece nele, reconhece também o que os diferencia. E a sugestão dada pelo título é assim relativizada.
“Como se faz para pedir perdão ao pai? Ainda não era tarde. Reconciliados, agora se dariam bem. Pouco importava se um estivesse vivo e outro morto”. Assim termina o conto, com um aspecto importante da obra de Trevisan.
Apesar dos becos curitibanos, muito concretos; da multidão de pais, como esse, bêbados e violentos; dos banhos de sangue; das prostitutas e do sexo carnal, palpável; enfim, apesar dos elementos narrativos muito realistas, Trevisan faz despontar, por meio da linguagem, elementos ilusórios que não se explicam nem se desenvolvem; permanecem apenas como indicação de que existe algo para além do sensível.
Assim como nesse caso é possível que a morte não desfaça uma relação familiar e, pelo contrário, a estreite, permitindo inclusive que o morto seja parte ativa na situação, no já mencionado “Pedrinho” o personagem que intitula o conto é uma criança que morre e ainda assim mantém seu desejo de ganhar um par de tênis.

De todos os períodos. A primeira leva de publicações inclui O Vampiro de Curitiba, Chorinho Brejeiro, Pão e Sangue, Ah, é?, Desgracida, e O Beijo na Nuca – Imagem: Redes Sociais
O pai de Pedrinho não chora a morte e ainda reprime a mulher, mãe: “Não chore, mulher. Sou o pai, não estou chorando”, e são os leitores que devem imaginar qual é o raciocínio do homem. Será que o pai, de acordo com ele mesmo, teria mais direito de chorar que a mãe? E por quê? O que sente ele? As respostas não importam. Importante é o que as palavras despertam, mas não dizem.
Trevisan era habilidoso e arrojado, então criava mistérios pelo conteúdo e também na forma de contar as histórias. Sua sintaxe é repleta de elipses. Frases como “Que sim com a pálpebra”, que omitem o verbo no início; ou “São horas? Um homem casado? De chegar?”, que abdicam de pronomes e preposições, cumprem um papel marcante em sua prosa.
Elas podem até parecer mera economia vocabular, mas esse modo de escrever imprime um tom insinuante e, ao mesmo tempo, convida o leitor a ser ativo na leitura, preenchendo lacunas.
O livro Ah, é? radicaliza ainda mais as formas breves de Trevisan. Encontram-se nele pérolas como:
“Aparou o bigodinho e escolheu a camisa florida.
— Ele se enfeitava para a morte e não sabia”.
O sujeito morreu? De quê? O sujeito é um tipo específico, por causa da descrição caricatural? Ou um tipo geral, como nós que toda manhã nos aprontamos para viver e não sabemos se chegou o nosso dia. A concisão que permite, por um lado, uma leitura em dez segundos proporciona, por outro, uma demora maior, e prazerosa a quem gosta de fantasiar, para pensar em respostas a essas perguntas e outras.
Estrela desta primeira fase das reedições, O Vampiro de Curitiba é um clássico da literatura brasileira, e o responsável pelo apelido de Trevisan. Subversivos num período em que subversão custava caro, os contos acompanham Nelsinho, o vampiro, perambulando por uma capital paranaense que bem poderia ser a capital da humanidade.
“Ele se enfeitava para a morte e não sabia”, lê-se, em um dos contos breves de Ah, é?
Lá os personagens cedem às vontades e conjugam-se com a cidade em decadência. Os prazeres e os sofrimentos da traição, da volúpia, da lascívia estão nos pobres-diabos que afundam nos poços do inferno citadino.
O conto “Debaixo da Ponte Preta”, em que uma adolescente negra é estuprada, reconta o estupro sob a ótica do depoimento de vários personagens – inclusive de três soldados. Conforme os depoimentos se sobrepõem, os fatos parecem mudar: todos a estupraram, um e outro a estupraram, um só a estuprou, outro a estuprou, e enquanto os homens são ouvidos a adolescente revive o estupro num ciclo infinito.
Apesar de o erotismo penetrar a prosa de Trevisan, com cenas sexuais que duram de uma reticência a múltiplas páginas, o autor tem a consciência exata de quanto mostrar. Do corpo humano não explicita mais que um mamilo aqui, outro acolá. Deixa partes implícitas, sem mesmo as mencionar, ou as escondendo em imagens poéticas, ou ainda trazendo palavras sugestivas, que só dizem algo àqueles que já pensavam naquilo:
“— Veja como é quentinho. Pegue.
Ela pegou sem entusiasmo.
— Relaxe, meu bem. Não fique de pescoço duro.”
O adjetivo usado para qualificar o pescoço engana, por um ínfimo instante; parece referir-se, mas não se refere.
Cada volume traz uma seção chamada “Canteiro de obras”, contendo diferentes fac-símiles de cartas de e para Trevisan, diários, manuscritos, matérias de jornal, fotografias, curiosidades inéditas sobre vida e obra do vampiro. Ainda este ano serão publicados mais dois títulos: Novelas Nada Exemplares e Dinorá. •
Publicado na edição n° 1367 de CartaCapital, em 25 de junho de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Escrita misteriosa’