Durou menos de 72 horas a encenação de Donald Trump e Benjamin ­Netanyahu. Quando a Operação Leão Emergente lançou as primeiras bombas em cidades do Irã, incluída a capital Teerã, na madrugada da sexta-feira 13, o presidente dos Estados Unidos e o primeiro-ministro de Israel tentaram disfarçar a cumplicidade. A Casa Branca negou ter sido informada a respeito da agressão e Tel-Aviv garantiu mirar exclusivamente em alvos militares para destruir a capacidade nuclear do inimigo e eliminar a “ameaça atômica”.

Com o passar das horas, diante da omissão ou do apoio explícito de países europeus e de integrantes do G7, a dupla decidiu jogar os escrúpulos diplomáticos às favas. A escalada retórica e dos bombardeios iniciada na segunda-feira 16 deixou tudo preto no branco, como se tornou comum nos tempos atuais. Tanto Trump quanto Netanyahu admitiram sem rodeios planejar a derrubada do regime dos aiatolás, um desejo de longa data de ambos. Os dois apostam na insatisfação crescente da população com a repressão interna e com os efeitos econômicos dos embargos aplicados ao país.

Na terça-feira, após a destruição da sede da tevê estatal iraniana, Bibi insinuou que Ali Khamenei, líder supremo, teria o mesmo destino de Saddam Hussein, enforcado em 2006, na esteira da invasão do Iraque por tropas norte-americanas. No mesmo dia, ao deixar às pressas a reunião do G7 em Kananaski, província nas Montanhas Rochosas canadenses, Trump sugeriu aos 10 milhões de moradores de Teerã que deixassem a cidade e afirmou aos jornalistas: “Não estamos buscando um cessar-fogo… estamos buscando por algo melhor do que um cessar-fogo”. E o que seria isso?, perguntou um repórter. “Um fim, um fim real. Não um cessar-fogo. Um fim.” Em Washington, o republicano voltou à carga. Exigiu a “rendição total de Khamenei” e declarou que a “paciência estava se esgotando”, antes de emendar: “Não vamos matá-lo, ao menos por enquanto”. Na quarta-feira 18, em pronunciamento na tevê, o líder iraniano retrucou. Disse que não aceita “uma guerra imposta” e que qualquer ataque norte-americano a seu território “terá consequências graves e irreparáveis”.

Pelas ruas de Teerã, cartazes e faixas convidam a população para o funeral dos militares mortos durante bombardeios israelenses à cidade – Imagem: Atta Kenare/AFP e Behrouz Mehri/AFP

Enquanto o presidente dos EUA partia de Kananaski antes da foto oficial do evento, mas depois de humilhar os parceiros, o resto do G7 optava por fechar as portas à possibilidade de mediar o fim do conflito. Em comunicado, o grupo das maiores economias do planeta, sempre cioso em lembrar que a Rússia é a agressora na guerra da Ucrânia, decidiu ignorar a responsabilidade de Tel-Aviv e transformou o algoz em vítima. Israel, aponta o texto, “tem o direito de se defender”.

Até o fechamento desta edição, na manhã da quarta 18, o saldo das mortes indica a desproporção dos recursos militares dos dois lados. Os bombardeios israelenses deixaram mais de 200 mortos do Irã, enquanto o revide dos aiatolás produziu um décimo das vítimas. Instalações de enriquecimento de urânio iranianas em Natanz e Fordow foram parcialmente destruídas e militares de alta patente do país morreram durante os ataques a alvos civis na capital. Entre os oficiais mortos estão Mohammed Bagheri, chefe do Estado-Maior, e Esmail Qaani, comandante da unidade de elite da Guarda Revolucionária, promovido ao posto depois do assassinato de Qassem Soleimani, em 2020, a mando de Trump. Em resposta, o Irã afirma ter atingido a sede do Mossad, o serviço secreto de Israel. O governo iraniano mantém em público a promessa de reação à altura, mas suas limitações de defesa e o isolamento internacional obrigam o país a apelar pela mediação dos vizinhos Catar, Omã e Arábia Saudita. Nas redes sociais, Abbas Araqchi, chanceler iraniano, acenou a Washington. “Se o presidente Trump está realmente comprometido com a diplomacia e interessado em pôr fim a esta guerra, os próximos passos serão decisivos”, escreveu. “Israel deve interromper sua agressão e, na ausência de uma interrupção (dos ataques), nossas respostas continuarão.” Principal aliada, a Rússia evitou até agora externar posições mais claras. Assoberbado pelos três anos de guerra em território ucraniano, Vladimir Putin limitou-se a defender uma solução diplomática e se ofereceu para abrigar o urânio enriquecido em usinas iranianas, caso os aiatolás se disponham a um gesto de boa vontade.

Netanyahu sonha com um ataque direto e massivo ao Irã há mais de uma década. Está marcada na história a sua tentativa de convencer, com um desenho tosco, os participantes da Assembleia-Geral da ONU em 2012 que os iranianos haviam fabricado uma bomba nuclear. O episódio tornou-se um dos primeiros memes da internet. Em 2009, durante um breve período fora do poder em Israel, ­Bibi enviou, em entrevista a Jeffrey Goldberg, um recado ao recém-eleito Barack ­Obama. O democrata, desafiou, tinha uma grande missão, “impedir o Irã de desenvolver armas nucleares”. Caso contrário, prosseguiu, Israel seria forçada a atacar as instalações inimigas. O Ocidente, argumentava, não desejaria que “um culto messiânico apocalíptico” controlasse bombas atômicas. Obama, ao contrário da sugestão de Netanyahu, preferiu a trilha de um acordo com Teerã para o uso pacífico da energia nuclear, negociação que seria torpedeada pela extrema-direita israelense e engavetada por seu sucessor na Casa Branca, Donald Trump.

Os EUA, afirmou o republicano, não buscam um cessar-fogo, mas o “fim” do regime dos aiatolás

Passados 16 anos da entrevista-amea­ça, Netanyahu vislumbrou finalmente as condições para colocar seu projeto em prática. O enfraquecimento dos organismos multilaterais, o fortalecimento do extremismo de direita ao redor do planeta, a frouxidão de países ocidentais com alguma capacidade de intervenção no cenário internacional e a volta à Casa Branca de Trump, outro obcecado pela ideia de derrubar o regime iraniano, criaram o ambiente propício para a incursão militar. Ainda assim, a operação de Tel-Aviv não deixou, em certa medida, de surpreender os analistas, por ter sido desencadeada dois dias antes de uma nova reunião entre negociadores dos Estados Unidos e do Irã em torno de um acordo que impusesse limites à produção nuclear iraniana. As conversas haviam sido retomadas em 7 de abril e foram vistas àquela altura como uma derrota de Bibi, ferrenho opositor a qualquer tipo de negociação. Os especialistas e diplomatas agora se perguntam se o movimento de Washington não foi apenas uma cortina de fumaça para desviar a atenção e dar tempo às forças israelenses para planejar a operação.

Derrubar os aiatolás nada tem a ver com a ideia de livar a região e o planeta de um governo islâmico radical. Uma eventual troca de regime no Irã alteraria por completo o jogo de forças no Oriente Médio. Um governo iraniano pró-Ocidente e alinhado a Israel minaria as resistências locais, facilitaria o projeto expansionista de Tel-Aviv, serviria de recado a países abertos a se aproximar da China e da Rússia, caso da Arábia Saudita, que negocia a entrada nos BRICS, e fecharia uma porta à expansão geopolítica de Pequim.

“Não vamos matá-lo, ao menos por enquanto”, disse Trump a respeito de Khamenei – Imagem: AFP

Ao longo dos últimos dias, a participação dos EUA no plano ficou menos nebulosa. Segundo revelações da rede de tevê NBC, o general Dan Caine, chefe do Estado-Maior, descreveu a operação militar israelense a Trump no domingo 8, durante uma reunião em Camp David, a casa de campo dos presidentes dos EUA. O republicano teria então reclamado da “teimosia” dos negociadores iranianos em aceitar a proposta de Washington, que mais se assemelhava a um ultimato: o desmonte e abandono total da estrutura de produção e pesquisa nuclear, mesmo para fins pacíficos. Trita Parsi, sueco de origem iraniana e vice-presidente do Quincy ­Institute for Responsible Statecraft, identifica na proposta inicial do republicano a desculpa para o alinhamento posterior aos bombardeios ordenados por Netanyahu. “Em vez de buscar negociações razoáveis, Trump propôs o objetivo de zero enriquecimento, o que de forma previsível levaria a um impasse, e de forma previsível seria usado pelos israelenses para justificar os ataques militares e a escalada do conflito”, escreveu no Twitter.

Nas primeiras horas da operação Leão Emergente, assessores de Trump fizeram um jogo de cena. O secretário de Estado, Marco Rubio, foi o primeiro a publicar nas redes sociais uma mensagem, na qual negava o aval da Casa Branca. “Esta noite”, escreveu, “Israel tomou uma ação unilateral contra o Irã. Nós não estamos envolvidos nos ataques e nossa prioridade mais alta é proteger as forças americanas na região.” Quem assessora o republicano sabe, no entanto, do risco de ser desmentido em público. Aconteceu de novo. Em entrevista à Reuters no dia seguinte, o presidente dos EUA desdisse o secretário: “Sabíamos de tudo, e tentamos salvar o Irã da humilhação e da morte”.

Os líderes do G7 reunidos no Canadá endossaram os ataques de Israel. Lula era convidado e não pôde opinar a respeito – Imagem: Teresa Suares/AFP

Segundo Hector Saint-Pierre, professor e pesquisador na área de estudos militares, os bombardeios que mataram os comandantes militares iranianos repetem a estratégia de “decapitação” de lideranças usado para enfraquecer o ­Hezbollah, grupo armado do Líbano. “No caso dos ataques de agora, eles instalaram uma fábrica para produzir os drones da primeira leva da operação, decisão confirmada por agentes do Mossad capturados pela inteligência iraniana.” ­Tratou-se­, de acordo com o pesquisador, de uma operação profundamente bem-sucedida, não só por eliminar generais de primeira linha, mas por destruir as instalações de disparo de mísseis balísticos. “Aproveitaram a distração criada por Trump com a negociação de um tratado nuclear. Quando foi atingido pelas bombas israelenses, o comando iraniano discutia justamente o andamento das negociações com Washington.”

Entre a sexta-feira 13 e o sábado 14, o Irã revidou na medida do possível. Centenas de mísseis e drones foram lançados em direção ao território israelense, mas a maioria acabou interceptada pelo Domo de Ferro, o sistema de defesa antiaéreo. Alguns projéteis furaram, porém, o bloqueio e causaram estragos. O jornalista Trey Yingst, em Tel-Aviv, publicou vídeos com prédios em ruínas da cidade, entre eles o Kyria, “versão do Pentágono israelense”. Usinas e terminais de petróleo em Haifa também seriam atingidos nos dias posteriores. A população, por orientação das forças de segurança, se refugia em bunkers.

As negociações da Casa Branca com o Irã parecem agora uma cortina de fumaça

Netanyahu uniu a fome à vontade de comer. Ao iniciar um conflito direto com o maior inimigo regional, o primeiro-ministro desviou o foco dos seus problemas internos. O premier salvou-se por pouco de uma moção de censura no Parlamento que levaria à queda do governo e à consequente retomada dos processos judiciais, nos quais é acusado de corrupção. Bibi estava na corda bamba não pelos crimes cometidos contra os palestinos em Gaza – neste caso, ele continua a ter o apoio da maioria dos eleitores –, mas pelo fim de um privilégio restrito aos judeus ortodoxos, antes dispensados do serviço militar obrigatório. Sem efetivo para se manter em tantas frentes de batalha, o premier conseguiu mudar a lei, para a fúria de dois partidos extremistas de sua base, o United Torah Judaism e o Shas, que ameaçaram abandonar a coalizão e encurtar a permanência no poder de Netanyahu. A moção foi rejeitada na quarta-feira 11, dois dias antes do início da operação. Diante do novo conflito, a oposição desistiu de insistir no assunto. “Não é o momento certo de fazer política”, declarou Yair Lapid, principal adversário de Bibi. O atual governo obteve, assim, uma sobrevida mínima de seis meses. Para o primeiro-ministro, um dia a mais é sempre uma vitória.

O ataque também implodiu a “Conferência Internacional para um acordo pacífico para a Questão Palestina e Implementação da Solução de Dois Estados”, organizada pela França e Arábia Saudita. Em 23 de maio, a representação francesa nas Nações Unidas definia a reunião como uma oportunidade de alcançar um cessar-fogo na Faixa de Gaza­ e “atingir resultados concretos no solo”. O governo francês pediu a libertação dos reféns israe­lenses e o fim “do inferno” ao qual está submetida a população civil no enclave. A Conferência da ONU, no pior cenário, seria um palco de críticas a Netanyahu. No melhor, poderia levar a sanções duras contra Israel. Poderia. Na sexta 13, Emmanuel Macron anunciou o adiamento por tempo indeterminado do encontro e repetiu o lugar-comum que justifica a omissão da União Europeia diante das barbaridades cometidas por Israel e do aprofundamento do caos no Oriente Médio. “A França tem repetidamente condenado o programa nuclear do Irã e tem tomado as medidas apropriadas como resposta. É nesse contexto que reafirmamos o direito de Israel se defender e garantir a sua segurança.” Macron e as demais lideranças da UE deveriam lembrar-se das consequências da instabilidade naquela região. Em geral, a retaliação em forma de atentados terroristas costuma atingir cidades europeias como Madri e Paris. O cancelamento da conferência e a nova frente de batalha desviaram a atenção da limpeza étnica em ­Gaza. As notícias tornaram-se menos frequentes, mas o massacre continua a todo vapor. Em apenas um dia, 34 civis palestinos foram assassinados em uma espécie de emboscada, quando buscavam comida em um centro de distribuição de alimentos administrado por Israel e por uma empresa privada norte-americana.

Enquanto o mundo se volta para o conflito entre Israel e o Irã, o massacre na Faixa de Gaza continua na mesma intensidade de antes – Imagem: Eyad Baba/AFP

Trump, acredita Parsi, parece determinado a levar os EUA a uma guerra contra o Irã ao lado de Israel. “Sua conduta nos últimos dez dias destruiu qualquer confiança de Teerã na Casa Branca. Os iranianos apenas retrocederiam na posição estabelecida de não desistir do enriquecimento de urânio se tivessem confiança no fim do conflito.” Essa impressão foi corroborada por uma reportagem do site norte-americano Axios. Fontes anônimas do governo teriam revelado a intenção do republicano de autorizar bombardeios a instalações nucleares iranianas. O SS Nimitz, porta-aviões com capacidade para abrigar cem aeronaves, foi deslocado do Mar da China para as imediações do conflito no Oriente Médio. Ao mesmo tempo, os israelenses passaram a anunciar explicitamente o objetivo de derrubar o regime. De acordo com o Canal 14, de Israel, o gabinete de Netanyahu aprovou no domingo 15 o plano de forçar a evacuação em massa de civis das principais cidades e gerar um descontentamento interno forte o suficiente para desestabilizar o comando dos aiatolás. “Teerã será tratada como Beirute”, avisou ­Israel Katz, ministro da Defesa.

Para ter sucesso completo, Netanyahu não prescinde do apoio logístico dos Estados Unidos. A maior parte do complexo nuclear iraniano está instalada em bunkers de grande profundidade ou incrustados em montanhas. “Os israelenses não dispõem de bombas em quantidade e potência suficientes e específicas para atingir esse objetivo. Os ataques podem atrasar, em alguma medida, esse processo de desenvolvimento nuclear, mas não destruir. Para tanto, precisaria de bombas muito específicas, que os Estados Unidos possuem. Além das bombas, Israel não tem aviões suficientemente poderosos para carregá-las”, afirma Saint-Pierre.

“Teerã será tratada como Beirute”, avisou Israel Katz, ministro da Defesa

Os EUA e Israel irão para o tudo ou nada? Veremos uma nova configuração de poder no Oriente Médio? Os fracassos norte-americanos na região nas últimas décadas, do Iraque ao Afeganistão, abrem a possibilidade da confirmação de um velho ditado: quem semeia vento, colhe tempestade. Real ou ilusória, a efetiva colaboração iraniana com a Agência Internacional de Energia Atômica escorreu pelo ralo. O vice-ministro de Relações Exteriores, Mohammad Gharibabadi, ameaçou com a saída do país do tratado de não proliferação de armas nucleares. “De agora em diante”, afirmou no sábado 14, “medidas novas e especiais para proteger materiais e equipamentos nucleares não serão notificados para a AIEA, e o Irã não cooperará com a AIEA como antes.”

A agressão israelense, destaca Saint-Pierre, tende a produzir o efeito contrário ao suposto objetivo de Netanyahu. Ou seja, tende a apressar a produção de uma bomba nuclear por Teerã. “Se esse projeto existia na mente do Irã, agora vai ser acelerado.” Segundo o pesquisador, se de fato for esse o desfecho, o Oriente Médio se tornaria mais estável no longo prazo. “Atualmente, temos a preeminência de um Estado terrorista como o de Israel, liderado por um primeiro-ministro criminoso de guerra procurado internacionalmente.” Por ora, Netanyahu e Trump espalham o caos. •

Publicado na edição n° 1367 de CartaCapital, em 25 de junho de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Parceiros no caos’

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Last Update: 18/06/2025