No ano passado, o presidente Lula quase enfrentou a abertura de um processo de ­impeachment por afirmar em voz alta o que muitos pensavam, mas evitavam dizer publicamente. Ele ousou perguntar por que o governo de Israel promovia um genocídio contra o povo palestino, de modo similar ao que fizeram os alemães nazistas contra os judeus no século passado. A iniciativa partiu da deputada Carla Zambelli, hoje foragida da Justiça. À época, ela conseguiu reunir 139 assinaturas para apresentar o requerimento. O pedido acabou arquivado e só serviu para aumentar o poder de barganha do chantagista Arthur Lira, então no comando da Câmara dos Deputados.

Lula foi acusado de antissemitismo, mesmo após a África do Sul ter apresentado uma denúncia formal contra Israel à Corte Internacional de Justiça, em Haia, justamente pela prática de genocídio contra a população palestina. Aposto que muita gente tinha essa mesma pergunta na cabeça, mas sem palanque onde se expressar. Eu mesma já havia pensado nisso, com enorme tristeza: como um povo que sofreu o Holocausto pode apoiar que seu governo cause o mesmo sofrimento a outro povo? Pois parece que sim. A shoah palestina vai de vento em popa, sem que qualquer potência ocidental confronte o premier israelense, Benjamin Netanyahu.

A psicanálise utiliza o conceito de “identificação com o agressor” para tentar compreender esse fenômeno. Trata-se de um mecanismo de defesa psíquico: a pessoa que sofre agressões físicas, ultrajes ou humilhações provocadas por alguém mais forte, ou em posição de autoridade, e começa – após prolongado sofrimento – a cogitar se o agressor não teria alguma razão para tratá-la tão mal. Em casos mais extremos, a vítima, já emocionalmente fragilizada, pode até apaixonar-se pelo agressor, que lhe parece alguém forte, decidido, inquebrantável. Só que a identificação com quem lhe causa tamanho sofrimento é, muitas vezes, insuportável. Há casos em que a vítima acaba tirando a própria vida, como se buscasse matar, dentro de si, esse outro por quem sente, simultaneamente, terror, ódio e fascínio.

Certamente, parte expressiva da sociedade israelense não apoia a shoah imposta por seu governo ao povo palestino, mas também não vi notícias indicando revoltas populares contra esse nazismo contemporâneo. O que vemos são fotos de crianças assustadas e subnutridas em Gaza, com desespero no olhar. Como não chorar diante da expressão nos rostos desses inocentes? Ao vê-los, lembrei-me da pergunta feita por Primo Levi, um sobrevivente de Auschwitz, ao descrever os farrapos humanos que perambulavam pelos campos de concentração nazistas: “É isso um homem?”, indagou o escritor. Sim, as vítimas eram – e são – seres humanos. Quem não merece essa designação são aqueles que os condenaram aos piores sofrimentos.

Na Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos e sua população foram decisivos para derrotar os nazistas. O mesmo, infelizmente, não se pode dizer da sociedade norte-americana hoje, após a reeleição de um presidente que se alia incondicionalmente a Israel, sem qualquer tentativa concreta de pressionar Netanyahu a aceitar um cessar-fogo e permitir que o povo palestino finalmente tenha paz, após todo o suplício a que foi submetido. Ao contrário, Donald Trump parece endossar todas as ações do governo israelense, inclusive a recente ofensiva contra o Irã.

A história se repete como farsa? Antes fosse. A farsa pode ser ­desmascarada. O que vemos hoje não é uma caricatura grotesca do passado, mas a repetição de um horror já conhecido. A história, que no século XX registrou a forma mais brutal de sofrimento infligido a um povo – no caso, o povo judeu –, não se repete como farsa na Palestina. Repete-se como uma nova forma de Holocausto. Um genocídio que não precisa mais de fornos crematórios para exterminar um povo: basta cercá-lo e deixá-lo morrer de fome. •

Publicado na edição n° 1367 de CartaCapital, em 25 de junho de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Mais um Holocausto?’

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Last Update: 18/06/2025