A isca foi lançada durante o depoimento do tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro, ao Supremo Tribunal Federal. Após responder às perguntas dos ministros Alexandre de Moraes e Luiz Fux, além do procurador-geral da República, Paulo Gonet, o delator passou a ser interrogado pelos advogados dos demais réus no processo sobre a tentativa de golpe de Estado após as eleições de 2022. Quando chegou a vez da defesa do ex-presidente, todos se surpreenderam com uma pergunta feita por Celso Vilardi: “Conhece um perfil chamado @gabrielar702?” Cid gaguejou: “Esse perfil… eu não sei se é da minha esposa. Gabriela é o nome da minha esposa”.
Vilardi não insistiu e mudou de assunto. Não precisava contraditar o réu. Aparentemente, essa missão estava reservada à revista Veja. Na sexta-feira 13, a publicação chegou às bancas com a “denúncia” de que Cid mentiu em juízo. Segundo a reportagem, ele teria enviado mais de 200 mensagens pelo perfil no Instagram, entre 29 de janeiro e 8 de março de 2024, alegando que se sentiu pressionado pela Polícia Federal em seus depoimentos e que os investigadores teriam um objetivo preestabelecido de prender Bolsonaro.
Inicialmente, Veja manteve o suspense sobre a identidade de quem trocou confidências com o delator. Na madrugada da terça-feira 17, revelou que o interlocutor era o advogado Eduardo Kuntz, defensor do coronel Marcelo Câmara, ex-auxiliar de Jair Bolsonaro e também réu na ação sobre a tentativa de golpe que tramita no STF. Segundo a revista, foi o próprio Cid quem tomou a iniciativa de procurá-lo pelo Instagram. Todas as conversas e ligações foram registradas e, apenas agora, na reta final do julgamento, o criminalista decidiu entregar a Moraes a íntegra desse material.
Os benefícios podem ser anulados, mas as provas obtidas com o delator devem ser preservadas pelo STF
O advogado Cezar Bitencourt, defensor de Cid, pediu ao STF a abertura de uma investigação para identificar a titularidade e o uso do perfil @gabrielar702. “Esse perfil não é e nunca foi utilizado por Mauro Cid”, afiançou, garantindo que o militar cumpriu todos os termos de sua colaboração premiada, inclusive as cláusulas que determinam o sigilo dos depoimentos. “Trata-se, portanto, sem sombra de dúvida, de uma falsidade grotesca e produzida para servir de prova no processo penal, sujeita, em tese, a sanções previstas no art. 347, parágrafo único, do Código Penal.”
Não será difícil descobrir quem está mentindo. No mesmo dia em que a revista começou a circular, Moraes solicitou que a Meta – dona do Facebook e do Instagram – forneça informações sobre o perfil mencionado na reportagem. Na decisão, o ministro pede acesso aos dados cadastrais (como e-mail e número de telefone), questiona a existência de logins vinculados, pergunta se houve acessos por computadores ou notebooks e solicita a inclusão, na resposta, de todas as mensagens enviadas e recebidas por @gabrielar702 entre 1º de maio de 2023 e 13 de junho de 2025.
Caso reste comprovado que Cid violou o sigilo e desqualificou o conteúdo de seus depoimentos à PF, o delator pode perder o prêmio negociado com a Justiça: pena privativa de liberdade não superior a dois anos, restituição de bens e valores apreendidos, extensão dos benefícios para seu pai, esposa e filha maior de idade, e proteção da PF para garantir a segurança de sua família. É improvável, no entanto, que a colaboração seja integralmente anulada, como solicitou a defesa de Bolsonaro na segunda-feira 16. Em casos semelhantes, o Supremo avaliou que os benefícios podem ser cancelados, mas as provas obtidas com base na delação são preservadas.

Trunfo. Ao menos o ex-ministro sanfoneiro sabe como animar as festas no presídio – Imagem: Valter Campanato/Agência Brasil
Vilardi argumenta que “o teor das diversas mensagens expõe não só a falta de voluntariedade, mas especialmente a ausência de credibilidade da delação”. No entanto, grande parte dos relatos de Cid foi confirmada por documentos ou testemunhos, como o do brigadeiro Carlos Almeida Baptista Júnior. Em juízo, o ex-comandante da Aeronáutica afirmou que Bolsonaro convocou os chefes militares para discutir a decretação de um Estado de Defesa ou de Sítio após a derrota nas urnas. Dias depois, o então ministro da Defesa, general Paulo Sérgio Nogueira, ainda tentou apresentar uma minuta golpista, mas acabou repreendido: “Com base em tudo o que estava acontecendo, perguntei: ‘O documento prevê a não assunção no dia 1º de janeiro do presidente eleito?’ Ele (Nogueira) disse: ‘Sim’. Eu disse que não aceitava nem receber esse documento. Me levantei e fui embora”.
Cid está longe de ser um colaborador da Justiça exemplar. Em diversos momentos, precisou complementar sua delação após a Polícia Federal identificar omissões nos relatos. Em março de 2024, chegou a ter a prisão preventiva decretada, após o vazamento de áudios, também revelados pela revista Veja – oh, surpresa! –, nos quais o delator dizia ter sido pressionado a seguir a “narrativa pronta” de Moraes e da PF: “Eles não queriam saber a verdade, queriam só que eu confirmasse a narrativa deles”. Dois meses depois, o ministro do STF mandou soltar Cid, que alegou ter feito apenas um “desabafo”, mas reiterou as informações prestadas aos investigadores e reafirmou a voluntariedade de sua delação, mantida integralmente.
De acordo com a PF, o ex-ministro Gilson Machado tentou obter passaporte português para Cid deixar o País
Na sexta-feira 13, o militar quase voltou a ser preso novamente, após a PF revelar que Gilson Machado, ex-ministro do Turismo de Bolsonaro, tentou obter um passaporte português para Cid, o que abriria caminho para o delator deixar o País. Durante a madrugada, Moraes chegou a decretar a prisão preventiva da dupla, além de autorizar mandados de busca e apreensão. Poucas horas depois, o magistrado mudou de ideia: em vez de prender Cid, determinou que ele prestasse esclarecimentos. Já Machado chegou a ser detido, mas foi libertado no mesmo dia.
Moraes avaliou que as diligências realizadas ao longo do dia foram suficientes e destacou que a Procuradoria-Geral da República, durante a audiência de custódia, manifestou-se favorável à substituição da prisão preventiva de Machado por medidas cautelares menos gravosas. O ministro sanfoneiro teve o passaporte cancelado, está proibido de deixar a cidade onde reside e de manter contato com os demais réus da trama golpista. Moraes não esclareceu, porém, a razão do prende-e-solta em relação a Cid. •
Golpismo continuado
Presidenciável extremista tem de garantir indulto ao ex-presidente, diz Flávio Bolsonaro

Confissão. O senador diz não falar em “tom de ameaça”, mas defende que o ungido resista a uma decisão contrária do STF – Imagem: Edilson Rodrigues/Agência Senado
Em entrevista à Folha de S.Paulo, o senador Flávio Bolsonaro foi tratado com a indulgência que o jornalismo “profissional” tem dedicado aos golpistas e criminosos da extrema-direita. O bolsonarismo cultiva, no entanto, o estranho hábito de se autoincriminar e dispensa qualquer esforço do interlocutor para complicar o meio de campo. Escorrega mesmo quando alguém lhe estende o tapete vermelho e segura sua mão. Um boneco de posto teria arrancado as mesmas declarações do filho, descrito por aí como o ente racional da família. Em um trecho específico da conversa, Flávio sugere claramente um golpe de Estado, caso um eventual indulto ao pai e associados seja considerado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal. Às favas a Constituição. O ex-presidente tentou disfarçar no depoimento ao ministro Alexandre de Moraes, durante o qual rastejou em busca de um perdão, mas o projeto golpista continua a poluir a mente dos bolsonaristas. Vale reproduzir a íntegra de duas respostas.
Um indulto a Bolsonaro seria uma condição para o apoio dele ao candidato da direita?
Muito além disso. Por isso que eu estou falando que a anistia é o remédio. Porque, vamos supor, aconteceu essa maluquice de condenar Bolsonaro. Ele está inelegível, vai ter que apoiar alguém. Não só vai querer apoiar alguém que banque a anistia ou o indulto, mas que seja cumprido. Porque a gente tem que fazer uma análise de cenário também de que, na hipótese de o presidente dar um indulto para Bolsonaro, o PT vai entrar com um habeas corpus no STF. (Vão declarar que) é inconstitucional esse indulto. Então vai ter que ser alguém na Presidência que tenha o comprometimento, não sei de que forma, de que isso seja cumprido. (Adendo desta revista: a tortura do português é um traço da família.)
Mas como?
É uma hipótese muito ruim, porque a gente está falando de possibilidade de uso da força. A gente está falando da possibilidade de interferência direta entre os Poderes. Tudo que ninguém quer. E eu não estou falando aqui, pelo amor de Deus, no tom de ameaça, estou fazendo uma análise de cenário. É algo real que pode acontecer. Bolsonaro apoia alguém, esse candidato se elege, dá um indulto ou faz a composição com o Congresso para aprovar a anistia, em três meses isso está concretizado, aí vem o Supremo e fala: é inconstitucional, volta todo mundo para a cadeia. Isso não dá. Certamente, o candidato que o presidente Bolsonaro vai apoiar vai ter que ter esse compromisso, sim.
Reitere-se: “E eu não estou falando aqui, pelo amor de Deus, no tom de ameaça, estou fazendo uma análise de cenário”. Se não foi uma ameaça, foi o quê?
Segunda pergunta: os militares vão se dispor a tentar outro golpe?
Terceira: qual presidenciável se compromete a aceitar esses termos?
por Sergio Lirio
Publicado na edição n° 1367 de CartaCapital, em 25 de junho de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Jogada ensaiada’