Por Carlos Ocké*

Quem está coberto por planos de saúde acompanha com apreensão o debate sobre as novas regras da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).

Capturada pelo setor que deveria regular, a ANS permite que as operadoras imponham medidas prejudiciais aos consumidores, à concorrência regulada e à qualidade dos serviços — seja na agenda setorial, seja no Judiciário (com o veto a ações regulatórias) ou no Legislativo (com o bloqueio a CPIs).

Um exemplo recente: em 2023, a ANS cedeu à pressão das operadoras e flexibilizou as regras dos ativos garantidores — recursos que asseguram o cumprimento de obrigações financeiras em caso de insolvência. O percentual permitido para ativos não monetários saltou de 20% para 50%, aumentando os riscos para os consumidores.

Dois fatores marcam a trajetória recente do setor: a oligopolização e os efeitos da covid-19.

Dados oficiais mostram que o número de operadoras caiu de 1.501 (2009) para cerca de 700 (2025).

Em particular, durante a pandemia, apesar do discurso das operadoras sobre prejuízos nesse período, o setor viveu um movimento acelerado de concentração e registrou lucros recordes de R$ 20 bilhões em 2020 — graças à redução no uso de serviços pelos usuários.

No pós-pandemia, apesar das joint ventures, com a desaceleração das aquisições e a pressão por resultados sólidos nos balanços, as operadoras intensificaram a guerra por market share.

Para agradar acionistas, adotaram estratégias predatórias: venderam planos abaixo do custo para ampliar a base de usuários e, logo sem seguida, impuseram reajustes abusivos, negativas de cobertura e cancelamentos unilaterais. O resultado? Lucros expressivos em 2024, com reclamações disparando.

Apesar da recuperação financeira dos planos e o crescimento do número de usuários, a ANS hoje está soterrada pelo enorme número de processos, enquanto o mercado — oligopolizado, com preços altos e qualidade duvidosa — esgotou sua capacidade de expansão dentro do que prevê a lei. O consumidor, sem renda para pagar mais, ainda enfrenta o risco de ser excluído na revisão de sinistralidade.

Diante desse cenário, a ANS propõe um pacote de mudanças que inclui planos ambulatoriais com cobertura reduzida, que será rediscutido na câmara técnica aberta pela agência. Neste fórum, é preciso redobrar a atenção, para que a sociedade seja de fato ouvida e ele não seja apenas mais um ritual para cumprir tabela.

Sob a retórica de “democratizar o acesso”, o plano popular pode se tornar um mecanismo para transferir custos ao SUS e para subtrair a qualidade da atenção à saúde dos consumidores, enquanto as operadoras ampliam lucros: as operadoras registraram, no primeiro trimestre deste ano, lucro líquido de R$ 6,9 bilhões, mais que dobrando o valor de R$ 3,1 bilhões apurado no mesmo período em 2024.

Cabe destacar, nos últimos anos, esse é o trimestre com melhor desempenho em termos de margem de lucro, perdendo apenas para o segundo trimestre de 2020, quando se iniciou o lockdown na pandemia.

Na verdade, o chamado “plano popular” tem por objetivo encher o bolso dos bilionários da saúde, atraindo a clientela de cartões de desconto e clínicas populares, abrindo nova fronteira de acumulação para as operadoras. Além disso, usuários de planos coletivos (80% do mercado) podem acabar sofrendo redução de cobertura (downgrade), sem garantias contra reajustes abusivos.

Vale dizer, do ponto de vista econômico, por meio de diversos mecanismos, o padrão de financiamento público e o SUS socializam, em alguma medida, o custo de reprodução dos planos privados.

No caso do “plano popular” (preço e risco baixos), isso fica escancarado: as operadoras lucrarão com a abertura desse nicho de mercado e ao SUS caberá atender os casos mais graves, em geral mais custosos e complexos.

Caso persistam dúvidas quanto a essa obviedade, basta a ANS se reunir com o Ministério da Saúde para verificar a taxa de encaminhamento de casos complexos do mercado para o SUS (ex.: oncologia, cardiologia etc.), ou ainda, estimar o lucro das operadoras nesse segmento vs. o custo evitado por não cobrir procedimentos caros.

E, finalmente, atendendo apenas 25% da população, como pode um setor que faturou R$ 315 bilhões em 2024 — mas acumulou 370 mil reclamações pelo desajuste entre preço e qualidade do serviço (tratamento oncológico é um dos “campeões” do ressarcimento) — resolver o gargalo de acesso do SUS, que atende o conjunto da população, com um produto mais barato e simplificado?

Deste modo, uma alternativa viável para reconstruir a política regulatória da ANS, considerando que a maioria dos usuários pertence à população economicamente ativa, que ganha entre 2 e 10 salários-mínimos, é fortalecer a regulação dos planos empresariais (pisos de sinistralidade equilibrados atuarialmente; pool de usuários com tamanho eficiente; e fim das rescisões unilaterais discricionárias).

Seguindo a experiência do Rol Exemplificativo, que obriga as operadoras a cobrirem procedimentos fora da lista, desde que comprovada sua necessidade para o tratamento do paciente, essa medida, sim, teria uma forte repercussão positiva junto à opinião pública.

Fica claro que o governo deve fazer um esforço para discernir a realidade das percepções enganosas: planos baratos vendidos no mercado não resolverão, tampouco mitigarão os problemas de saúde da população brasileira.

Em um setor oligopolizado, verticalizado e financeirizado, apenas regulação forte garantirá preços justos e qualidade.

*Carlos Ocké, economista, doutor em saúde coletiva pela UERJ e autor do livro “SUS: o desafio de ser único”. Atualmente, é técnico de planejamento e pesquisa do Ipea.

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Last Update: 18/06/2025