O que falta no ‘abrasileiramento’ da Petrobras

por Iago Montalvão

Após dois anos do encerramento da política comercial da Petrobras vinculada exclusivamente ao Preço de Paridade Internacional (PPI), é possível observar que o processo de “abrasileiramento” dos preços trouxe benefícios ao consumidor e contribuiu para a redução da pressão inflacionária no país. No entanto, aumentos na margem de distribuição e revenda dos combustíveis e a disparidade entre os preços domésticos e internacionais ainda persistem como desafios.

Segundo a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), nas refinarias da Petrobras, nos últimos 28 meses (entre janeiro de 2023 e abril de 2025), o valor do diesel apresentou uma redução de 23,9%. Já a gasolina e o GLP, no mesmo período, tiveram quedas de, respectivamente, 2,2% e 17%. Apesar disso, as reduções de preços nas refinarias não foram integralmente repassadas pelas distribuidoras ao consumidor final. No mesmo período, a gasolina apresentou um aumento de 25,5% nos preços, enquanto o diesel S10 e o GLP tiveram reduções de apenas 2,3% e 0,7%, respectivamente.

Essas discrepâncias sofrem a influência de diversos fatores, inclusive da recomposição de impostos reduzidos no final do governo Bolsonaro, em um movimento demagógico que buscava salvar sua própria reeleição. Mas aqui buscamos jogar luz sobre dois aspectos: os ganhos na margem de distribuição e revenda, e a disparidade entre os preços domésticos e internacionais.

No primeiro caso, é possível observar um aumento constante nos últimos anos. De acordo com a ANP, em janeiro de 2019 – período anterior à privatização da Liquigás e da BR Distribuidora –, a margem bruta de distribuição e revenda da gasolina era de R$ 0,74 por litro. Em maio de 2025, segundo projeções realizadas com a mesma base de dados, esse valor alcançou R$ 1,14 por litro, indicando um aumento significativo de 54,1%. Padrão semelhante ocorreu no caso do diesel, cuja margem passou de R$ 0,66 para R$ 1,05 por litro (59,0% de aumento), e do GLP, que registrou elevação de R$ 31,96 para R$ 54,54 por botijão de 13 kg (70,6% de aumento).

Embora parte do aumento das margens possa refletir custos operacionais, seu ritmo acelerado, especialmente diante das quedas nos preços das refinarias da Petrobras, indica a influência de outros fatores. Essa disparidade, inexistente no período pré-2019, revela uma nítida aceleração nos ganhos das distribuidoras entre 2019 e 2025. A desproporção entre a redução nos preços de refinaria e a manutenção de altas margens levanta questionamentos sobre possíveis retenções de benefícios que deveriam chegar ao consumidor final, cenário que reforça a urgência da Petrobras recuperar seu papel na cadeia de distribuição.

Embora relevante, essa análise não esgota a discussão sobre os desafios de manter preços baixos em meio à queda internacional. A adoção de uma política menos atrelada ao PPI permitiu à Petrobras maior estabilidade nos preços domésticos, mas criou uma assimetria: em momentos de alta global, a empresa pode recorrer à oferta nacional para amortecer impactos, porém, quando os preços internacionais caem abaixo dos patamares locais, parte dos ganhos potenciais é capturada e posteriormente, uma parte acaba sendo direcionada ao pagamento de dividendos em vez de repasses ao consumidor.

Em 2025, em um cenário de queda sustentada nos preços internacionais, a Petrobras levou mais de dois meses para ajustar seus valores, mesmo após o PPI da gasolina ficar 12,0% abaixo dos preços das refinarias entre o final de março e junho. Nesse período, a redução anunciada nos preços nas refinarias foi de apenas 5,6% – menos da metade da variação externa.

No diesel, a desconexão também fica evidente. Desde o início de março, o PPI acumula queda de 10,6%, enquanto as refinarias da Petrobras anunciaram três reajustes de preços que acumularam uma redução de 7,8%. A diferença expõe a resistência em alinhar totalmente a política doméstica à trajetória de barateamento global, mesmo com a estratégia de preços “abrasileirados”.

A disparada do preço internacional do petróleo em função dos ataques de Israel ao Irã demonstram como esse mercado é altamente suscetível a choques externos, sobretudo de natureza geopolítica. Nesse sentido é fundamental que a Petrobras sustente sua política de preços, amortecendo o impacto da volatilidade internacional sobre o mercado doméstico de combustíveis e, consequentemente, sobre a inflação doméstica.

Dados da ANP mostram que, nos primeiros quatro meses de 2025, as importações de combustíveis cresceram, em média, 6,1% em comparação com o mesmo período de 2024, com destaque para o diesel, que liderou esse aumento. Esse movimento sugere que os preços internacionais estão se tornando mais competitivos em relação aos praticados no mercado interno, incentivando maior dependência de importações.

Se, de um lado, a Petrobras protege o mercado interno de altas internacionais – respaldada por uma oferta doméstica relevante –, de outro, ainda resiste a repassar integralmente as quedas globais, priorizando preservação de margens e distribuição de dividendos. Essa postura é agravada pelo desmonte do parque refinador, que reduziu drasticamente a capacidade estatal de regular preços.

Nesse cenário cabe uma estratégia de múltiplas dimensões que combine: (1) ampliação de investimento e reestatização de refinarias-chave como a Refinaria Mataripe e a Ream – cuja privatização elevou preços na região Norte; (2) reestatização de distribuidoras, ou ao menos regulação e supervisão mais rígida no setor; e (3) alinhamento efetivo da política de preços aos interesses nacionais. Embora a reintegração completa das distribuidoras exija tempo, a Petrobras pode usar imediatamente sua influência para garantir que os consumidores brasileiros usufruam dos benefícios da queda internacional. O verdadeiro “abrasileiramento” exige romper com a lógica que subordina o interesse público aos ganhos de acionistas ou ao pagamento de juros da dívida pública, transformando a política de preços em ferramenta ativa de controle inflacionário e de desenvolvimento econômico.


Iago Montalvão – Economista, mestre e doutorando em Ciência Econômica pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pesquisador na área de Preços e Fiscal do Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (Ineep).

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Last Update: 17/06/2025