O Brasil de Cafardo

por Daniel Afonso da Silva

De tempos em tempos, a grande imprensa brasileira relembra seus princípios, desfaz-se da miséria do cotidiano, ignora a polarização ambiente, sobe o nível do debate, organiza-se por questões consequentes e lança bases para verdadeiras meditações pelo país. Foi o que se fez com o artigo “Coisas que acontecem num certo país infeliz”, assinado pelo experimentado jornalista Pedro Cafardo, no Valor Econômico, do último 10 de junho de 2025.

Seu argumento sugere que o debate econômico brasileiro padece de calibragem. Está mal focado. Atirando, excessivamente, em “problemas fiscais”. Alimentando realidades paralelas. Desprovidas de lastros na realidade brasileira. Onde, de fato, inflação, desemprego, desigualdade e fome recuam. A renda per capita dos pobres e os retornos em dividendos dos ricos aumentam. E as safras de alimentos batem recordes, afirmando o país como um dos maiorais em segurança alimentar em todo o planeta. Evidenciando, per se, que a “infelicidade” e o “pessimismo” do país não advêm da “economia, estúpido”. Mas, talvez, da “comunicação”. Demonstrando a comunicação do governo Lula da Silva é péssima ou inexistente por não conseguir defender os seus feitos; e, consequentemente, abre espaço para peças de contestação falsas ou sem sentido, oriundas da oposição nostálgica de antigos mandatários admiradores de emas.

O artigo de Cafardo parece lúcido. E, no limite, é mesmo.

Chega sem ruídos. Apresentando-se na contramão do onanismo mental ambiente do “nós contra eles”. Sugerindo a necessidade de superação – para não dizer, desideologização – do debate. Sobretudo o econômico. Para que se possa chegar às presidenciais de 2026 com o joio separado do trigo. A fim de se dispor uma conversação melhor botada sobre o futuro do país.

Ótimo. Excelente. Mas merece adições. Vez que o mal-estar do país claramente não têm origem simplesmente na economia. Malgrado a economia represente muito na equação. A infelicidade decorre, por claro, de passados não recompostos. Que merecem análise e meditação.

Pois, goste-se ou não, o mundo e o Brasil – para não regredir a tempos muito distantes – continua navegando nas intempéries da crise financeira mundial de 2008, nos efeitos da primeira presidência de Donald J. Trump, na amargura do retorno do trágico impetrado pela crise sanitária do biênio 2020-2021 e na conjuntura de estabilidades voláteis consagradas pela nova tensão russo-ucraniana, pela aflição no Oriente Médio, pela erosão das estruturas ocidentais, pelas hesitações dos representantes do “Sul Global”, pelo avatar climático, pelos dissensos energéticos e pelas errâncias da ação exterior brasileira.

Tudo, visto assim, mareja por níveis de abstração ineditamente exigentes. Que impõem capacidade de apreensão, organização, mediação e transmissão superior a tudo que já se fez no presente imediato e nos passados mais remotos.

Humor – sobretudo de um país – é um estado de espírito. Cociente de ânimo. Que decorre mais de sensações que de dados pretensamente objetivos sobre baixas de inflação, desemprego, desigualdade e mesmo fome.

De modo que Cafardo tem razão ao tocar no fator comunicação. Mas ele próprio sabe que nenhuma comunicação, por excelente que seja, consegue superar os maus presságios contidos na história e na memória de um país, feliz ou infeliz por natureza.

No caso exclusivo do Brasil, esses maus presságios, em tempos recentes, começaram naquelas noites de junho de 2013, realizaram-se no impeachment de 2015 e prisão do presidente Lula da Silva em 2018, retornaram no incidente do 8 de janeiro de 2023 e esboroaram-se no dossiê Silvio Almeida.

Nenhum esforço foi movido para refazer esses eventos. Escolheu-se seguir-se infeliz.

De modo que tem razão Cafardo. Não é “economia, estúpido”. É muito mais.

Daniel Afonso da Silva é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e autor de “Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas”.

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Last Update: 16/06/2025