Alguns Esclarecimentos Sobre a Questão do Irã

Por Marcelo Zero*

O programa nuclear do Irã, que tem abrigo jurídico no TNP, foi criado ainda na década de 1950, mediante acordo entre os EUA e o Xá do Irã, no âmbito do projeto “Átomos Para a Paz”, de Eisenhower.

Antes de tudo, é preciso afirmar que qualquer país signatário do TNP, tal como o Irã, tem o direito de ter um programa nuclear para fins pacíficos e de enriquecer urânio, como o Brasil faz.

Isso está previsto explícita e claramente no TNP:5

Artigo IV:

1. Nenhuma disposição deste Tratado será interpretada como afetando o direito inalienável de todas as Partes do Tratado de desenvolverem a pesquisa, a produção e a utilização da energia nuclear para fins pacíficos, sem discriminação, e de conformidade com os artigos I e II deste Tratado.

2. Todas as partes deste Tratado comprometem-se a facilitar o mais amplo intercâmbio possível de equipamento, materiais e informação científica e tecnológica sobre a utilização pacífica da energia nuclear e dele tem o direito de participar. As partes do Tratado em condições de o fazerem deverão também cooperar – isoladamente ou juntamente com outros Estados ou Organizações Internacionais – com vistas a contribuir para o desenvolvimento crescente das aplicações da energia nuclear para fins pacíficos, especialmente nos territórios dos Estados não-nuclearmente armados, Partes do Tratado, com a devida consideração pelas necessidades das regiões do mundo em desenvolvimento.

Os governos iranianos, desde a época do Xá, ditador brutal, queridinho do Ocidente, investiram bilhões de dólares em seu programa nuclear, que sempre teve como principal objetivo prover o Irã de energia elétrica, para poder exportar mais petróleo e desenvolver pesquisas médicas.

É evidente que o Irã não vai desistir de um programa nuclear que já tem mais meio século e no qual foram investidos bilhões dólares. É óbvio também que o Irã vai opor feroz resistência a renunciar inteiramente ao enriquecimento de urânio, algo que não é vedado pelo TNP.

É preciso que se entenda que o programa nuclear iraniano tem grande apoio da opinião pública interna. Trata-se um programa que, como já salientado, foi iniciado ainda na década de 1950, no regime do Xá Reza Pahlevi, com o apoio decidido dos EUA.

O primeiro reator nuclear iraniano, inteiramente construído pelos EUA, começou a operar em 1967, com urânio medianamente enriquecido (urânio enriquecido a cerca de 20%). Posteriormente, o Xá firmou um acordo para que os EUA construíssem no Irã 23 usinas nucleares até 2000.

Outras potências se juntaram a esse esforço. A Alemanha firmou, em 1975, acordo com Teerã para a construção de duas grandes centrais nucleares baseadas em água pressurizada, um investimento de US$ 6 bilhões.

A França criou com o Irã a Sofidif (Société franco–iranienne pour l’enrichissement de l’uranium par diffusion gazeuse), mediante um investimento de US$ 1 bilhão. Com a sociedade criada, o Irã teria o direito de usar 10% do urânio enriquecido produzido.

Mas não ficou só nisso. Em 1976, os EUA ofereceram ao Irã uma usina de reprocessamento de material radioativo, que permitiria aos iranianos o domínio de todo o ciclo nuclear e a fabricação de plutônio, material com o qual se pode construir uma bomba atômica.

O objetivo manifesto do programa nuclear iraniano da época era, como afirmamos, gerar energia a partir do uso de urânio, de modo a permitir que o Irã exportasse grandes excedentes de petróleo e produtos petroquímicos. O Xá, líder de um país rico em petróleo, virou garoto-propaganda da indústria nuclear internacional.

Evidentemente, os EUA, com todas essas ofertas, estavam, inclusive, começando a criar as condições para um possível armamento nuclear do Irã, na época grande aliado dos norte-americanos no Oriente Médio, região historicamente conturbada e instável.

Relatório da CIA de 1974, já “desclassificado”, indicava claramente essa possibilidade. Segundo o relatório, se o Xá ainda estivesse vivo em meados da década de 1980, e se outros países da região se armassem (notadamente a Índia, como de fato aconteceu) o Irã, “sem dúvida”, seguiria o mesmo caminho. Entretanto, isso não parecia inquietar muito Washington.

Tudo mudou, evidentemente, com a queda do regime de Reza Pahlevi. Todos os acordos e contratos foram cancelados ou revistos, mesmo sendo instrumentos jurídicos de Estados, e não de governos.

Em alguns casos, o dinheiro dos investimentos iranianos sequer foi totalmente devolvido, como aconteceu com a sociedade francês-iraniana para o enriquecimento de urânio.

Os reatores que estavam sendo construídos pela Alemanha tiveram de ser abandonados e os EUA pararam de fornecer urânio para o reator operante desde 1967.

Obviamente, essa forte inflexão política provocou intensa desconfiança dos iranianos, em relação às grandes potências ocidentais.

Eles consideram que não podem confiar nesses países como fornecedores de combustível para seus reatores. Por isso, resistem à ideia de simplesmente renunciar ao enriquecimento de urânio.

Volte-se a frisar o TNP não proíbe o enriquecimento de urânio. O Brasil, por exemplo, já enriquece urânio a 20%.

Já sob o regime islâmico, o Irã voltou a investir em seu programa nuclear, mediante esforço próprio e ajuda moderada de países como Paquistão.

Desde então, o programa nuclear iraniano, antes tão estimulado pelo Ocidente, passou a ser demonizado, especialmente por Israel (que já tem armas atômicas) e pelos EUA.

Justiça seja feita, apesar das inúmeras sanções impostas pelos EUA e outros países, o Irã tentou diversos acordos com o Ocidente para resolver a questão.

Pois bem, o Brasil e a Turquia, com o apoio explícito das grandes potências, inclusive dos EUA, como comprovava cabalmente a carta enviada ao presidente Lula por Obama, chegaram, em 2010, a um acordo com Teerã, plasmado na hoje famosa “Declaração de Teerã”.

Esse acordo conseguido pelo Brasil era praticamente idêntico ao acordo que tinha sido tentado meses antes, sem sucesso, pelos EUA, a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), a França, a Rússia e a Alemanha.

Naquela ocasião, por motivos políticos internos do regime iraniano e pela desconfiança entre as Partes, o acordo não frutificou.

É que o governo dos EUA anunciou que, com o acordo, o Irã renunciava ao enriquecimento de urânio, como tenta fazer agora.

A oposição iraniana protestou. O grande rival do então presidente Ahmadinejad, Hossein Mousavi, perdedor da eleição de 2009 e queridinho da mídia ocidental, foi quem mais se opôs ao acordo.

Tal acordo previa o envio de 1.200 quilos de urânio levemente enriquecido iraniano (cerca de 60% do total disponível) para o exterior, e tinha dois efeitos imediatos: a) impossibilitava a construção de qualquer artefato nuclear por parte do Irã, pois para isso seria necessário enriquecer a mais de 90% cerca de 2.500 quilos de urânio levemente enriquecido, sendo que os iranianos ficariam com apenas cerca de 800 quilos, e b) abria as portas para uma cooperação pacífica entre o Irã e as potências ocidentais.

Por isso mesmo, o acordo foi bem recebido por quem entendia do assunto. El Baradei, ex-diretor da AIEA, uma das maiores autoridades mundiais no tema, deu pleno apoio ao acordo.

A maior parte dos países também. Aliás, se houvesse uma votação na Assembleia das Nações Unidas sobre o acordo, Brasil e Turquia seriam aclamados. Diga-se de passagem, a própria Resolução do Conselho de Segurança que impôs, pouco depois, novas sanções ao Irã, em virtude do bombardeio do acordo por parte dos EUA, elogiava o entendimento conseguido por Brasil e Turquia e o considerava uma importante medida para a “construção de confiança”.

O próprio Comandante-em-Chefe da OTAN na EUROPA, general James Stavridis, afirmou, na época, que o acordo era um exemplo do que todos buscávamos, um sistema diplomático que visasse um “bom comportamento” por parte do regime iraniano.

Gary Sick, que foi membro do Conselho de Segurança Nacional dos EUA durante uma década, considerado um dos maiores especialistas norte-americanos em Irã, afirmou que “ter o Brasil e a Turquia trabalhando ativamente para desenvolver uma nova abordagem da questão iraniana era uma enorme vantagem para os EUA”.

Essa ação, segundo Gary Sick, tinha “valor incalculável para progressos futuros”. Com o malogro do acordo em razão da oposição dos EUA, Gary Sick lamentou que essa “grande oportunidade tivesse sido perdida”.

As principais razões para que os EUA tivessem inviabilizado o grande acordo conseguido pelo Brasil e articulado novas sanções contra o Irã, dificultando muito a continuidade das negociações, eram duas.

A primeira tangia ao fato de que o acordo (que eles tanto haviam procurado) foi conseguido por duas potências médias (Brasil e Turquia), sem histórico de intervenção no assunto.

Assim, o acordo turco-brasileiro retirou protagonismo dos EUA (e das outras grandes potências) numa região estrategicamente sensível. Eles ficaram melindrados com o êxito alheio e receosos quanto a manter o controle absoluto do processo de negociação.

A segunda, e mais preocupante, dizia respeito ao fato de que o Departamento de Estado norte-americano estava dividido quanto ao que fazer com o Irã.

Havia uma forte vertente, aparentemente hegemônica, que preferia apostar na desestabilização do regime iraniano. Por isso, a preferência pelas sanções, pela manutenção de uma pressão contínua e pelo crescente isolamento de Teerã.

Como já tinha acontecido no Iraque, o “desarmamento” seria usado como elemento essencial nesse processo. A política interna também pesava: a “demonização” do Irã tornava populares medidas de força contra esse país.

Todo esse cínico cálculo político mudou um pouco com a eclosão do Estado Islâmico, grupo que havia sido financiado e incentivado pelos EUA, e com o grande recrudescimento do terrorismo fundamentalista sunita no Oriente Médio, especialmente no Iraque e na Síria.

O Irã, de maioria xiita, é inimigo mortal desse terrorismo sunita (tanto da Al-Qaeda, quanto do Estado Islâmico), que chegou a representar a maior ameaça aos interesses ocidentais no Grande Oriente Médio.

Assim, em 2015, o Irã passou a ser visto como um possível aliado tático para a estabilização daquela região. O acordo que fez Obama naquele ano resultou dessas mudanças geopolíticas. Não resultou das sanções e das pressões.

Esse plano chama-se Plano de Ação Conjunto Global (em inglês: Joint Comprehensive Plane of Action – JCPOA) e foi negociado pelos EUA, a União Europeia, a Rússia, a China, a Alemanha, a França e Reino Unido.

Mas, apesar de alguns poucos progressos feitos, Trump resolveu, em 2018, sair do acordo, e tudo votou à estaca zero, especialmente após o assassinato de Suleimani.

Os EUA voltaram a fazer o máximo de pressão e a impor sanções draconianas contra o Irã.

Hoje, a desconfiança é muito grande. Diplomatas de Teerã e o chefe do programa nuclear iraniano, Mohammad Eslami, criticaram a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) e seu diretor, Rafael Grossi, por se recusarem a condenar veementemente as repetidas ameaças israelenses e os ataques noturnos de sexta-feira. Eles disseram que a agência nuclear global, que aprovou sua mais forte resolução de censura contra o Irã em quase duas décadas na quinta-feira, tornou-se uma “ferramenta” de pressão por parte de Israel e seus aliados ocidentais.

O fato é que nem Israel e nem os EUA querem acordo nenhum com o Irã. Usam do programa nuclear do Irã, assim como usaram do suposto programa de “armas químicas” do Iraque, para impor “pressão máxima” sobre Teerã.

Querem, na realidade, a mudança do regime político do Irã. Acham que o aumento da pressão e os ataques vão provocar a queda do regime dos aiatolás. As instalações nucleares iranianas, como a de Natanz, estão fora do alcance das bombas israelenses. O real objetivo dos bombardeios é levar pânico à população e induzir mudanças políticas internas.

Isso é ridículo. O Irã tem 5 mil anos civilização e não vai, é claro, apoiar um regime pró-EUA e pró-Israel, depois de tudo o que aconteceu. O regime atual do Irã, chefiado por Masoud Pezeshkian e pelo aiatolá Khamenei é bastante moderado. Mas achar que os bombardeios e as agressões vão levar a população iraniana a se “rebelar contra o regime” é o cúmulo da estupidez. Isso é fruto de muita ignorância.

Ocorrerá, provavelmente, o contrário, como aconteceu, no caso da Rússia. A guerra na Ucrânia só aumentou a solidariedade interna e fortaleceu Putin.

Essa questão do programa nuclear iraniano poderia já estar resolvida desde 2010, com a iniciativa brasileira.

A questão é que não querem resolver, assim como não deixaram o nosso embaixador Bustani resolver a fictícia questão das armas químicas do Iraque.

A coisa tende a ficar feia, caso Israel insista na guerra, a qual não poderá ser, evidentemente, uma guerra de ocupação. O Irã não é Gaza.

Os EUA, embora finjam não apoiar a guerra que se inicia, vão apoiar Netanyahu em tudo que precisar.

Mas uma civilização de 5 mil anos não se extinguirá em alguns dias. O Irã já demonstrou ter resiliência extrema.

É mais fácil Trump e Netanyahu caírem.

*Marcelo Zero é sociólogo e especialista em Relações Internacionais.

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Last Update: 14/06/2025