Via Resistência Lírica
Essa polícia é de matar!
Por João Batista Damasceno*
Publicado originariamente no jornal O DIA, em 14/06/2025
Numa monarquia autocrática ou teocrática o poder se legitima como se emanasse do próprio trono ou de Deus. A ideia do poder emanando de Deus chegou a ser teorizada em obra do jurista francês Jean Bodin, de 1576, no nono ano da fundação da Cidade do Rio de Janeiro, após expulsão dos protestantes franceses.
Posteriormente a Bodin outros filósofos escreveram que o poder não emana de deus, mas se constitui por um pacto civilizatório entre os cidadãos. Assim, em 1789, os franceses fizeram uma revolução, cortaram a cabeça do rei e mostraram que seu sangue não era azul, mas vermelho como o de todos. E numa assembleia nacional constituíram um novo modelo de Estado, declarando que todo o poder emana do povo.
Nas monarquias absolutistas tinha-se a concepção de que o rei não erra e que aqueles que agem em seu nome têm a presunção de estarem realizando sua vontade. Daí a presunção de legitimidade de seus atos. Mas nas democracias, onde o poder emana do povo, os agentes públicos não podem pretender privilégios que os sobreponham aos cidadãos.
Embora seja signatário da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), também conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, o Estado brasileiro mantém a tipificação do crime de desacato. Tal crime cerceia as liberdades públicas e foi instituído em favor dos agentes públicos contra a cidadania. No Rio de Janeiro o Tribunal de Justiça editou súmula (nº 70) reconhecendo que a palavra do policial é prova suficiente para a condenação. A revisão da súmula não afastou a presunção de veracidade. Portanto, se o policial diz que foi desacatado o cidadão está no sal. O Brasil já foi condenado algumas vezes pela Corte Interamericana de Direitos Humanos pela violação ao pacto por ele firmado e ratificado em defesa dos direitos humanos. Mas a condenação recai sobre o Estado e os governantes e agentes políticos que autorizam ou legitimam as violações nada sofrem.
O assassinato do office boy Herus Guimarães Mendes, de 23 anos (é preciso dizer que tem profissão para afastar a legitimação da execução), no Morro Santo Amaro, entre os bairros da Glória e Catete na Zona Sul do Rio de Janeiro, durante uma festa junina, é emblemático e mostra do que é capaz a política de extermínio instituída no Rio de Janeiro. Se na Zona Sul, durante uma festa junina, a polícia é capaz de ferir e matar moradores, imaginemos do que é capaz à noite nas ruas e becos não iluminados da Baixada Fluminense. A supremacia das armas e da truculência acanha e subjuga qualquer resquício de cidadania. E tudo sob o manto protetor da presunção de legitimidade dos atos de autoridade e de seus agentes. É o próprio estado policial em sua mais brutal aparição!
Diante do bestial assassinato de Herus, a PM afastou 10 policiais que participaram da operação e exonerou o coronel André Batista, comandante do Comando de Operações Especiais (COE), bem como o coronel Aristheu Lopes, comandante do Batalhão de Operações Especiais (Bope). Um sargento, possivelmente escalado para bucha, diz ter sido o único a efetuar disparos. A coisa ganha ares estranhos. Se era um tiroteio contra traficantes, por que somente um dos agentes teria disparado sua arma?
A violência policial é tema que me levou a iniciar escrever neste jornal em 2007. Em 16/02/2019, em artigo intitulado “A Boa Polícia” , tratei de uma incursão da PM no Morro do Fallet que causou 15 mortes. Um erro de publicação atribuiu as mortes ao Bope. Mas o então comandante do BPChq, tenente-coronel André Batista, reivindicou a operação. Ele já havia comandado o 9° BPM de Rocha Miranda. Trata-se de policial da elite da tropa, com currículo premiado. Foi o negociador do sequestro do ônibus 174, onde morreram a professora Geisa Gonçalves e o assaltante Sandro Barbosa. Além disto, é coautor do livro Elite da Tropa em parceria com o ex-capitão Rodrigo Pimentel, reformado da PM por surdez, e com o literato Luiz Eduardo Soares. O personagem André Matias no filme Tropa de Elite, teria sido inspirado em André Batista. Foi subsecretário do literato Luiz Eduardo Soares em Nova Iguaçu, na gestão do então prefeito Lindbergh Farias.
A polícia violenta, mas incorruptível, retratada no filme Tropa de Elite 1, decorre da concepção de uma “boa polícia” da qual falam o literato Luiz Eduardo Soares, da Uerj, e os formuladores do curso de Segurança Pública, da UFF. Em suas formulações, a “boa polícia” há de ser incorruptível, mas pode ser violenta, pois corrupção é uma opção; é um desvio pessoal. Mas a violência é um desígnio inevitável da atuação policial.
Terminei aquele artigo dizendo que nos resta apelar para o Tribunal Penal Internacional, para que a cadeia de comando da política de extermínio e aqueles que para ela concorrem, por não exercitarem o regular controle externo da atividade policial, sejam julgados por eventuais crimes contra a humanidade, assim considerados os massacres, a desumanização, os extermínios e as execuções. O texto me propiciou um irado telefonema do então governador e bloqueio nas redes sociais, o que me tira o sono até hoje.
Em 08/05/2021 voltei ao tema em artigo intitulado “Polícia fluminense matou mais 27”, analisando a incursão da Core no Jacarezinho, na mais letal operação policial da história do Rio de Janeiro, salientando dúvida, fundada em precedentes, sobre efetivo confronto e exercício de legítima defesa.
Punir alguns policiais e manter a política de extermínio é a receita para legitimar a continuidade das execuções dos indesejáveis. Mas às vezes os matadores erram na execução e até a mídia reclama.
*João Batista Damasceno é Doutor em Ciência Política pela UFF e professor associado da UERJ
O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.
“Democracia é coisa frágil. Defendê-la requer um jornalismo corajoso e contundente. Junte-se a nós: www.catarse.me/jornalggn “