Em uma manhã de maio em Pequim, longe dos holofotes da mídia internacional, Gabriel Galípolo, presidente do Banco Central do Brasil, encontrou-se discretamente com seu homólogo chinês, Pan Gongsheng, presidente do Banco Popular da China. Juntos, assinaram um acordo de swap de moedas no valor de R$ 157 bilhões (US$ 28,3 bilhões). O evento foi conduzido sem fanfarra, para não transformar o acordo em um factóide político que pudesse ser interpretado como algum tipo de alinhamento ideológico – o que não é o caso.

Por outro lado, é um acordo que tem sim um significado geopolítico profundo. Os valores totais do swap são relativamente modestos no contexto das reservas internacionais globais. Mas o que mais importa é que este acordo aponta para uma direção, um destino: a construção gradual de alternativas ao sistema financeiro centrado no dólar americano.

Mas o que significa, na prática, esse acordo de “swap cambial”? Imagine duas famílias vizinhas que decidem criar um sistema de ajuda mútua. Quando uma precisar de açúcar, pode pedir emprestado à outra, e vice-versa, sem precisar ir ao mercado toda vez. O acordo Brasil-China funciona de forma similar. Quando o Brasil precisar de yuan chinês para suas transações, pode “pedir emprestado” ao banco central chinês, oferecendo reais como garantia. Quando a China precisar de reais, o processo se inverte. É uma troca direta entre as duas moedas, sem passar pelo dólar americano como intermediário.

Sem muitos alardes, o mundo já começou a assistir ao declínio gradual da hegemonia do dólar americano. Trump promete tarifas de até 150% contra países que ousem buscar alternativas à moeda americana. Mas o processo de desdolarização segue seu curso inexorável. Ou seja, a emancipação do mundo da ditadura do dólar está em marcha. O Brasil, ainda de forma modesta mas determinada, já começou a diversificar sua cesta de moedas nas reservas internacionais. E esse acordo histórico – por mais discreto que tenha sido – é a prova mais concreta de que a desdolarização não é mais teoria, é realidade.

Evolução do renminbi nas reservas brasileiras

Os números não mentem. O renminbi chinês hoje representa 5,31% das reservas internacionais brasileiras – aproximadamente US$ 17,5 bilhões. Tornou-se a segunda moeda mais importante em nossas reservas, ultrapassando até mesmo o euro. Em apenas seis anos, a participação da moeda chinesa saltou de zero para mais de 5%. Um crescimento de mais de 1.000% que reflete uma mudança estrutural profunda na geopolítica financeira mundial.

O império das sanções e a vassalagem europeia

No mundo inteiro existe essa preocupação crescente com o uso político e imperialista do dólar. Ainda dominante, representando cerca de 58% das reservas globais, os Estados Unidos utilizam esse domínio para atacar países praticamente à vontade. Criam rupturas no comércio internacional através de um arsenal de sanções. Essa ferramenta se tornou o principal instrumento não apenas econômico, mas de desestabilização política e interferência na política doméstica dos países.

Declínio do dólar nas reservas globais

Os dados são alarmantes. Até maio de 2025, os Estados Unidos mantêm sanções ativas contra 30 países. São 37.949 medidas coercitivas unilaterais no total. Entre os principais alvos estão Rússia (28.573 sanções), Irã (2.888), Síria (1.361), Ucrânia (1.183), Venezuela (1.039) e República Democrática do Congo (845). Na América Latina, Cuba, Venezuela e Nicarágua enfrentam embargos que afetam milhões de pessoas.

Nesse cenário, a Europa desempenha um papel particularmente triste e submisso. Como vassalo obediente, segue as sanções americanas de forma completamente subordinada. Não ganha absolutamente nada com isso. Pelo contrário: a própria Europa acaba sendo sancionada indiretamente, prejudicando seus próprios interesses econômicos e estratégicos.

O caso mais gritante é o das relações Rússia-Europa. A Rússia, um dos maiores países da Eurásia, possui uma fronteira terrestre gigantesca com a Europa e abundantes recursos naturais. Existe um potencial natural de complementaridade entre as economias russa e europeias. Inclusive, sempre foi um dos segredos mal guardados da força industrial alemã. Mesmo no auge da Guerra Fria, havia comércio significativo entre Rússia e Alemanha.

Tanto que a própria Alemanha participou e financiou a construção dos gasodutos Nord Stream 1 e 2. Era uma infraestrutura estratégica para garantir gás barato às indústrias alemãs. Mas em uma demonstração clara de como os Estados Unidos tratam até mesmo seus “aliados”, os serviços secretos americanos sabotaram o Nord Stream 2. Uma infraestrutura alemã, paga pelos alemães para beneficiar a economia alemã, foi destruída pelos próprios “parceiros” americanos. Isso prejudicou diretamente a competitividade da economia alemã e elevou drasticamente os custos energéticos dos alemães.

Essas sanções acabam prejudicando o mundo inteiro. O sistema financeiro global, centrado no dólar, força todos os países a respeitarem as decisões unilaterais de Washington. Cada sanção do governo americano acaba sendo uma sanção contra o mundo inteiro. Ironicamente, até os próprios Estados Unidos saem prejudicados. O país acaba criando inimigos em todos os cantos do planeta, dificultando seu próprio comércio internacional.

Vozes da mudança

“Os BRICS significam praticamente metade da população mundial, significam quase metade do comércio exterior desse mundo e nós temos o direito de discutir a criação de uma forma de comercialização que a gente não dependa só do dólar. Não foi o mundo que decidiu que o dólar seria a moeda, foram os Estados Unidos”, declarou o presidente Luiz Inácio Lula da Silva em entrevista recente. Ele criticou as “bravatas” de Trump e defendeu o direito dos BRICS à desdolarização.

A posição brasileira encontra eco em outras lideranças do bloco. O presidente russo Vladimir Putin afirmou que “o grupo BRICS gerará a maior parte do crescimento econômico global nos próximos anos”. O presidente chinês Xi Jinping tem defendido consistentemente a criação de sistemas de pagamento alternativos ao SWIFT, dominado pelos americanos.

A ascensão do Sul Global

O comércio internacional também está se distanciando do eixo Estados Unidos-Europa. Outras partes do mundo têm crescido muito mais do que as economias desenvolvidas tradicionais. Os dados de 2024 são reveladores. Enquanto os Estados Unidos cresceram 2,2% em 2024 e a zona do euro registrou crescimento medíocre de 0,8% no mesmo ano, os BRICS apresentaram desempenho superior.

Composição das reservas brasileiras

O Brasil cresceu 3,4% em 2024, ficando em sétimo lugar no ranking mundial de crescimento econômico entre 40 países analisados. A China manteve crescimento robusto de 5,2% em 2024. A Índia expandiu 6,4% no mesmo ano. Mesmo a Rússia, sob pesadas sanções, conseguiu crescer 3,6% em 2024. Coletivamente, os BRICS já respondem por 37% do PIB mundial em paridade de poder de compra, superando os 29% do G7.

Essa mudança no centro de gravidade econômico mundial não é coincidência. Representa uma reacomodação tectônica que reflete o esgotamento do modelo unipolar centrado em Washington. Os países emergentes não apenas crescem mais rapidamente. Também desenvolvem infraestruturas financeiras próprias que reduzem sua dependência do sistema dominado pelo dólar.

Alternativas concretas

O acordo Brasil-China de maio é apenas a ponta do iceberg. O Banco dos BRICS (NBD) já financiou mais de US$ 30 bilhões em projetos, com 20% das operações realizadas em moedas locais. O sistema de pagamentos SPFS russo processa milhões de transações sem passar pelo SWIFT. O yuan chinês já representa 4,5% do comércio internacional global. É um crescimento exponencial em relação aos 0,3% de uma década atrás.

Linha do tempo desdolarização Brasil-China

No Brasil, o BNDES assinou em novembro de 2024 seu primeiro empréstimo em yuan, no valor de 5 bilhões de renminbi. Isso sinaliza que as instituições financeiras brasileiras estão se preparando para um mundo multipolar. O clearing house para transações diretas real-yuan, estabelecido em 2023, já processa bilhões em operações comerciais.

Crescimento do renminbi no comércio global

O futuro já começou

A desdolarização não é mais uma discussão teórica de economistas ou uma ameaça vazia de líderes autoritários, como gostam de pintar os defensores do status quo. É uma realidade econômica em curso. É impulsionada por necessidades práticas de países que representam a maioria da população mundial e uma parcela crescente da economia global.

O acordo de R$ 157 bilhões assinado por Galípolo em Pequim simboliza essa transformação. Não é o fim do dólar – que continuará importante por décadas. Mas é o início de um sistema financeiro internacional mais equilibrado. Um sistema onde nenhuma moeda ou país pode impor sua vontade unilateralmente ao resto do mundo.

Comércio Brasil-China em yuan

Trump pode ameaçar, sancionar e fazer suas “bravatas”, como bem definiu Lula. Pode até mesmo sabotar a infraestrutura de seus próprios aliados, como fez com o Nord Stream alemão. Mas a história econômica mundial já virou a página. A desdolarização começou, e não há tarifas, sanções ou sabotagens que possam detê-la. O futuro será multipolar. E o Brasil, com sua diplomacia equilibrada e pragmática, está posicionado para ser protagonista dessa nova era.

Categorized in:

Governo Lula,

Last Update: 11/06/2025