A criação de gado e a meritocracia

por Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

A pecuária de corte profissional tem rotina precisa. As vacas são máquinas de parir. Vivem uma corrida de obstáculos. Nas chuvas, os cios ficam regulares e elas são submetidas a duas seções de inseminação artificial. Em novembro, recebem  a primeira dose. Em dezembro, em outro retiro, as que ciarem por qualquer motivo, recebem outra dose. Em janeiro, vão para um pasto com um touro para cada 25 fêmeas. Em algumas propriedades, em fevereiro, elas são movidas para outro pasto com outros touros. É a última chance para emprenharem. A prenhez é testada em abril por ultrassom ou apalpação. As notoriamente cheias têm mais um ano de vida, enquanto as tidas como vazias vão para o abate.

Tudo depende de avaliação. A observação de cio, além do olhar do inseminador, depende dos rufiões. São machos que não merecem reproduzir, porém aptos a detectar o cio. Há três métodos para impedir a inseminação. O primeiro é a vasectomia que pode contaminar a vaca com brucelose. O segundo é o desvio, em que se corta a musculatura que sustenta o pênis, impedindo a penetração, porém, leva o animal a encurralar a vaca consumindo o ato apoiado na cerca. O terceiro, aderência, em que se costura o prepúcio, impedindo exposição do pênis e a penetração, levando-o a desistir. Há ainda a machorra, fêmea cujo comportamento denota homossexualismo. Aplica-se uma dose de testosterona e ela detectará cio, até encontrar outra fêmea com as mesmas tendências, isolando-se como um casal. Os rufiões são avaliados por um buçal de tinta, que mancha as costas da vaca ao montar. Cada tipo tem a sua cor e isso indica se está cumprindo ou não seu papel. Se não estiver, vai para o abate.

O inseminador também está sujeito a avaliação. Sua eficiência é medida pelo número de vacas que voltam ao cio, assim como pela idade dos fetos durante a avaliação. O número estimado de semanas indica quem é o pai.

Por último, os apalpadores são avaliados pelo número de fetos recuperados no abatedouro. É que significa que a vaca foi morta injustamente, pois estava cheia. Tudo isso não impede que vacas cheguem vazias à estação de parição. Elas poderão ter abortado por brucelose, pelo esturro de uma onça, por intoxicação, ou serem inférteis; não há como saber. Justo ou não, as que chegarem vazias à estação de parição, pagam com a vida pela suposta ineficiência.

A vida dos touros não é mais fácil. São avaliados de outra forma que não cabem aqui. Importante é que, por mais que o ser humano pretenda dar uma aura de objetividade às suas avaliações, haverá falhas. Por que, julgando-nos uns aos outros, seria diferente?

Um bom professor sabe que, quando se aplica uma prova, mede-se o que o estudante não sabe, pois ele pode saber muitas outras coisas que não lhe foram perguntadas.

Numa empresa de pintura eletrostática para que fomos contratados para desenvolver o algoritmo para ordenar a entrada dos pedidos na linha de produção, pretendia-se demitir a responsável pelo controle de qualidade por ineficiência. Feita a estatística das reclamações, o resultado não chegou a 0,5% do número de pedidos entregues. Ocorre que os pedidos têm quantidade variável de itens e o número mínimo de avarias para gerar reclamações é subjetivo e determinado pelo usuário. Assim, qualquer método de avaliação baseado em reclamações é inviável à nascença. Seria preciso montar um algoritmo interno para avaliação de qualidade, o que não era o escopo do serviço contratado.

O calvinismo precarizou o método de avaliação. Transformou os seres humanos em máquinas de ganhar dinheiro. Fantasiou a cobiça, denominando-a como obtenção da graça divina. O calvinismo dissemina a crença que as conquistas na Terra serão espelhadas no céu. Veio então a teologia da prosperidade. Ela distorce o que diz Lucas 6:20 “Bem-aventurados vós, os pobres, porque vosso é o Reino de Deus.”. Mais tarde, quando vertente evangélica desembocou na Teologia da Dominação, distorceu a segunda bem-aventurança encontrada no Evangelho de Mateus, capítulo 5, versículo 5: “Bem-aventurados os mansos, porque eles herdarão a terra.” Contraria também Isaías 11:6, que diz: “O lobo habitará com o cordeiro, o leopardo se deitará com o cabrito, o bezerro e o leãozinho pastarão juntos e um menino pequeno os guiará.” Ambas citações condenam a predação e dominação, o que fica ainda mais claro em: “A criação aguarda com ardente expectativa a revelação dos filhos de Deus. Pois a criação foi sujeita à frustração, não por sua própria escolha, mas por causa daquele que a sujeitou, na esperança de que a própria criação será libertada da escravidão da corrupção e terá a liberdade da glória dos filhos de Deus.” (Romanos 8:19-21).

Este não é um texto religioso, mas mostra como se podem usar conceitos religiosos para introduzir crenças que contrariam a própria religião, como é o caso da meritocracia, tão em voga na atualidade. O texto de Romanos, por exemplo, reconhece que as pessoas não nascem com as mesmas habilidade, muito menos as mesmas oportunidade, daí ser contraditório medir o sucesso ou o fracasso em cifrões ou pelo número de pessoas hierarquicamente subordinadas. Se a meritocracia é questionável na criação de gado de corte, cuja raça vem sendo apurada há séculos, além de terem nascido na mesma fazenda com as mesmas oportunidades de crescimento, o que se dirá de sua eficiência na categorização de seres humanos cujas origens são incertas e as condições de desenvolvimento totalmente díspares?

Propagar as qualidades da meritocracia é bizarro. Haver quem a cultue é inacreditável.

Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou o mestrado na PUC, pós graduou-se em Economia Internacional na International Afairs da Columbia University e é doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo. Depois de aposentado como professor universitário, atua como coordenador do NAPP Economia da Fundação Perseu Abramo, como colaborador em diversas publicações, além de manter-se como consultor em agronegócios. Foi reconhecido como ativista pelos direitos da pessoa com deficiência ao participar do GT de Direitos Humanos no governo de transição.

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Last Update: 10/06/2025