Você provavelmente já viu ou consumiu sorvetes Ben&Jerry’s. A B&J nasceu em 1978, em Burlington, Vermont. Com um investimento de 12 mil dólares, os amigos Ben Cohen e Jerry Greenfield, então com 27 anos, fundaram uma sorveteria artesanal em um posto de gasolina. Depois de investirem 5 dólares em um curso por correspondência para aprenderem o ofício. Amigos desde a adolescência, viveram as eletrizantes décadas de 60 e 70 nos EUA.

Poderia ser apenas uma empresa de sucesso com bons produtos. Mas não é. A B&J é um caso em que a marca tem voz. E a voz – de seus fundadores — é uma encrenca para quem entende que causas são marketing, não a razão de ser do negócio.

A B&J cresceu em um mundo que estava cheio de vigor para o futuro. Sempre posicionada claramente com causas – antes de isso virar moda de marketing com baixo comprometimento —, a empresa se expandiu e a marca se consolidou. O desempenho chamou a atenção da Unilever, que comprou a B&J em 2000. A aquisição parecia uma sacada e tanto. Compraram a empresa, criaram um conselho independente para fazer a gestão de marca e as estratégias de marketing.

Era preciso manter a voz da marca vocalizada por quem havia fundado a empresa.

O ativismo levou a atitudes corajosas. Quando estourou o movimento Vidas Negras Importam, a marca soltou um posicionamento na internet em que dizia: “Todas as vidas importam. Mas todas as vidas não importam até que as vidas negras importem”. Agora, o processo se radicalizou ainda mais. Em 2016, Ben e Jerry foram presos em um protesto do Despertar da Democracia, movimento de desobediência civil que buscava reduzir a influência dos grandes investidores nas campanhas eleitorais, questionava a Suprema Corte e outras coisas.

Em 2021, as relações ficaram publicamente tensas entre o conselho independente da B&J e a Unilever. As vendas dos sorvetes foram interrompidas nos assentamentos na Cisjordânia ocupada. A Unilever se viu envolvida em uma maratona de processos e sanções pelo desabastecimento e os problemas causados com seus clientes e parceiros locais. Os perrengues jurídicos impactaram o valor das ações. A operação na região foi vendida para um distribuidor local, em uma decisão da Unilever e contra a visão do conselho independente, permitindo que a marca continuasse a ser comercializada. O conselho independente, então, processou a Unilever. A alegação: violação ao acordo de aquisição que garantia a responsabilidade da marca e a fidelidade sobre a sua missão social.

Em 14 de maio deste ano, Ben Cohen foi preso depois de protestar no Congresso Americano contra o envio de armas para Israel no confronto em Gaza. Após a prisão, ele publicou uma mensagem nas redes sociais: “Eu disse ao Congresso que eles estão matando crianças pobres em Gaza ao comprarem bombas, e que estão pagando por isso ao removerem crianças pobres do Medicaid nos EUA. Esta (prisão) foi a resposta das autoridades”.

As polêmicas foram muitas. A B&J acusou a Unilever de demitir unilateralmente o presidente da empresa, alinhado com os valores da marca. O presidente da área de sorvetes da Univeler foi acusado de censurar um posicionamento crítico da B&J que sairia no dia da posse de Donald Trump. Essas informações fazem parte de um processo a que o Wall Street Journal teve acesso e publicou há alguns dias.

Agora, Ben começou um movimento para recomprar a marca. Criou um fundo para levantar dinheiro em uma missão quase quixotesca. Quer reunir investidores alinhados às crenças originais do negócio. O objetivo é comprar a B&J. Segundo ele, “os negócios são a força mais poderosa da nossa sociedade e, por isso, têm responsabilidade com a sociedade.”

A história está longe de terminar, mas revela ao menos duas lições importantes. A primeira delas é que para verbalizar uma causa, a marca precisa ter legitimidade, o que significa atuar de fato em linha com o que defende. Ben e Jerry sempre foram ativistas. Sempre se posicionaram contra os ataques aos direitos humanos. Posicionam-se, especialmente Ben, na defesa de Gaza livre e pela paz na região. Não entraram na causa para lucrar. Lucraram porque são o que são. Essa lição se desdobra em uma recomendação para qualquer empresa: não vale a pena trocar de posição pelo lucro. Mesmo porque ele desaparecerá com uma guinada falsa.

A segunda lição é mais próxima de um puxão de orelha. Causa não é marketing. É um erro tentar fazer com que a marca fale por uma casa sem autoridade. É um desrespeito às causas e a todos os envolvidos com elas. A eleição de Trump desencadeou um processo em que empresas se desobrigam de defender causas justas. Na verdade, muitas ficaram aliviadas ao descobrir que o mundo tem uma crise de valores e elas devem apenas surfar na crise. A verdade é que, mais dia, menos dia, a sociedade vai cobrar. Não agora, quando uma parte gigantesca do mundo vê a barbárie com bons olhos. Na barbárie, terra arrasada de valores, todos serão vítimas. Para se proteger, tornam-se mais bárbaros. Os vencedores são amorais, agressivos e intolerantes, para dizer pouco. Em um mundo assim, ninguém tem paz para, inclusive, consumir o que quiser. Ben é o que é. E isso é bom para a sociedade e para a marca. Mas não para qualquer marca.

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Last Update: 09/06/2025