Justiça cega e desequilíbrio tecnológico voyeurista

por Fábio de Oliveira Ribeiro

Essa notícia é incendiária.

“Juiz entra na cena do crime — em realidade virtual.

Pela primeira vez, um juiz da Flórida usou um óculos de realidade virtual (VR) no Tribunal para vivenciar uma alegação de legítima defesa do ponto de vista do réu.

Sem esboços. Sem palavras. Apenas uma compreensão imersiva — entrando na cena conforme ela se desenrolava.

A defesa construiu uma simulação detalhada em VR. O juiz usou um Oculus Quest 2. E o Tribunal viu como o futuro da justiça pode ser.

Isso não é apenas um truque tecnológico — é uma mudança de paradigma na forma como oferecemos justiça, empatia e evidências.”

Vide

No processo judicial e administrativo, todos os meios lícitos podem ser utilizados pelas partes para fazer a prova de fato juridicamente relevante (art. 5º, LV e LVI, da CF/88). Além de provas lícitas, na esfera cível as partes podem produzir provas moralmente legítimas não especificadas na legislação (art. 369, do CPC). O contraditório, ampla defesa e todos os meios de provas possíveis também garantidos no processo penal (art. 156, do CPP). Todavia, “São inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais.” (art. 157, do CPP).

As provas podem ser orais ou documentais. Os documentos podem ser públicos ou privados, não se fazendo restrição em relação ao tipo de suporte em que ele se encontra. Assim, o documento pode ser manuscrito, impresso ou reproduzido de maneira fotográfica ou contido em arquivo digital com texto, áudio, imagem ou vídeo.

Simulações virtuais como as referidas na notícia comentada são admissíveis, sendo certo que a avaliação delas dependerá da natureza do processo. Se, por exemplo, o caso envolver a disputa da autoria da criação de uma simulação que tem valor econômico ou cultural, o arquivo correspondente contendo ou não marcas distintivas acerca do dia, hora, local e ambiente em que foi criado, fará prova do próprio fato controvertido.

Mas em se tratando de simulação da versão de algo que aconteceu criada de acordo com as especificações de uma das partes, o vídeo não tem valor de prova daquilo que será levado ao conhecimento do juiz. Ele é apenas um meio de convencimento cujo conteúdo deve ser apreciado com reservas. Uma simulação (seja ela a reconstrução teatral do incidente com artistas ou fantoches digitais) nunca poderá ter mais valor probatório do que as provas convencionais coletadas no processo.

Sempre que avalia e julga algo, o ser humano tenta se colocar na situação em que o fato ocorreu. Ele faz a reconstrução mental do que ocorreu atribuindo a cada ato seu devido valor e a cada envolvido o direito ou a responsabilidade que lhe compete. O roteiro para essa reconstrução mental é fornecida tanto pela legislação aplicável quanto pelo conjunto probatório que foi colhido durante a instrução processual, com o necessário descarte do que é irrelevante ou consta em meio de prova inadmissível.

Nós vivemos mergulhados numa sociedade tecnológica que se tornou muito dependente da produção, circulação e consumo de imagens, sejam elas reais ou virtuais, verdadeiras ou fakes. Sendo assim, uma simulação em VR pode ser considerada extremamente poderosa. Ela “mostra” a juiz o que ocorreu de acordo com uma das partes. Isso pode condicionar a maneira pela qual o juiz avaliará as provas que foram coletadas no processo? Essa é a pergunta fundamental.

O filósofo Hans Jonas 91903-1993) afirma que:

“através do elemento da semelhança como intermediário, o objeto diretamente percebido é apreendido não como ele mesmo, mas como o objeto de outro objeto. Está lá apenas para representar outra entidade, e isso é apenas representado; assim, paradoxalmente, o vínculo ideal, a similitude ou o eidos como tal, torna-se o objeto real de apreensão (The Phenomenon of Life: Toward a Philosophical Biology, Hans Jonas, Northwestern University Press, 2001, p. 167).

“Em primeiro lugar, em um sentido um tanto forçado do termo, há ‘abstração’ do estado de estimulação sensorial em si no próprio fato de alguém perceber o objeto em vez de seu próprio afeto orgânico. Algum tipo de desengajamento da causalidade do encontro fornece a liberdade neutra para deixar o ‘outro’ aparecer por si mesmo. Nesse aparecimento, a base afetiva (estímulo, irritação) é cancelada, o seu registro é neutralizado. Em segundo, e em um sentido mais aceito, a percepção continuamente ‘abstrai’ do conteúdo sensorial imediato da afecção ao permitir ao objeto a sua identidade além da mudança de suas visões. (The Phenomenon of Life: Toward a Philosophical Biology, Hans Jonas , Evanston: Northwestern University Press, 2001 p. 168).

Se levarmos em conta a obra de Hans Jonas, é evidente que a predisposição mental do juiz ao ver a simulação de uma versão dos fatos antes de analisar as provas documentais e testemunhas não será a mesma que ele terá se o vídeo for visto depois dele ter criado mentalmente uma imagem do que ocorreu mediante a análise das provas existentes nos autos. No primeiro caso, o vídeo pode fornecer atalhos cognitivos que condicionarão a apreciação da prova. No segundo caso, o VR pode ou não confirmar hipóteses que foram criadas e consolidadas de acordo com o conjunto probatório e fortalecer as conclusões originais obrigando o juiz a reler e reavaliar os documentos e depoimentos nos autos do processo.

Não creio ser possível impedir a parte ou ambas as partes de apresentar sua versão dos fatos em vídeo. Todavia, me parece aconselhável que os vídeos produzidos pelas partes sejam sempre vistos pelo juiz após a análise cuidadosa das provas e não antes disso. Caso contrário, a tecnologia pode se transformar numa armadilha poderosa o suficiente para levar à prolação de decisões injustas.

Existem casos em que essas simulações em vídeo podem ser inúteis ou prejudiciais. A prova em vídeo capturada em tempo real por uma câmera instalada no carro, no imóvel, na rodovia ou no corpo de um policial sempre será muito mais eficiente e convincente para provar o que ocorreu do que uma versão parcial dos fatos em sentido contrário apresentada em VR. Nos casos de estupro, simulações em VR devem ser evitadas e rejeitadas em juízo, porque o vazamento delas pode expor a vítima a uma humilhação pública desnecessária independentemente do resultado do processo.

É preciso cuidado com essa tecnologia. Ela pode desequilibrar o processo em favor de uma das partes, aquela que tem dinheiro para produzir simulações em VR ou de qualquer maneira para produzi-las com maior qualidade técnica e detalhes. Sem paridade de armas, sem igualdade substantiva entre as partes garantida pelo judiciário, qualquer processo pode ser transformado num simulacro em que a vitória do mais forte (aquele que tem mais dinheiro) poderá sempre ser antecipadamente garantida.

Fábio de Oliveira Ribeiro, 22/11/1964, advogado desde 1990. Inimigo do fascismo e do fundamentalismo religioso. Defensor das causas perdidas. Estudioso incansável de tudo aquilo que nos transforma em seres realmente humanos. Fábio Kerche fez sua formação na Universidade de São Paulo (USP): graduação em Ciências

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Last Update: 09/06/2025