Quando a unificação italiana ocorreu na metade do século XIX, promovida pela Casa de Savoia, um vinho ganhou projeção à mesa entre os nobres: o barolo, feito com as uvas Nebbiolo, colhidas no Piemonte, norte do país. Escolhido pela dinastia real italiana, foi batizado como o vinho dos reis ou o rei dos vinhos.
Assim como as dinastias, o mais famoso vinho da Itália tem passado por transformações, seja pela emergência de uma nova geração de produtores, seja com os impactos das mudanças climáticas e dos preços cada vez mais elevados das terras, o que tem despertado a atenção de olhares estrangeiros.
Um dos capítulos da história dos últimos 50 anos de barolo e do vinho italiano é escrito pela família de Luciano Sandrone, cuja filha, Barbara, esteve recentemente em São Paulo, em evento da importadora Clarets. Quando a família Sandrone se mudou para a cidade de Barolo, tornou-se vizinha de Giacomo Borgogno, um dos mais famosos produtores da região. O pai de Luciano era carpinteiro, mas alergia ao pó de madeira e horas vendo o vinho sendo feito no vizinho levaram Luciano à enologia.

Barbara Sandrone, filha de Luciano Sandrone, um dos expoentes do movimento chamado “barolos boys”. Foto: Pantagruélicas
Aos 18 anos, bateu à porta do vizinho e conseguiu um emprego na linha de frente da produção de Giacamo Borgogno. Começou a guardar dinheiro e em 1977, aos 30 anos, comprou uma parcela de videiras em Cannubi Boschis, um pedaço de terra reputado pelos barolos ali plantados.
Um ano depois, em 1978, na sua garagem, começou a vinificar 1.500 garrafas, mantendo em paralelo seu trabalho de enólogo nas vinícolas de Giacomo Borgogno e Marchesi di Barolo. “Ele precisava de dinheiro e queria fazer seus vinhos, seguir um caminho próprio e isso coincidiu com mudanças no cenário”, recorda-se Barbara.
O vinho italiano no início dos anos 1980 começou a mudar. Em 1981, foi lançada a primeira Vinitaly, feira realizada na Itália com a intenção de reunir produtores de diferentes regiões do país e compradores de todos os países. Os vinhos de Luciano agradaram a compradores dos Estados Unidos e da Suíça.
Em paralelo, a nova geração de viticultores adotava novas técnicas. Na maneira tradicional, os produtores usavam grandes toneis de madeira para envelhecer o barolo buscando obter garrafas que evoluíssem por anos. Já a nova geração buscava vinhos mais acessíveis na juventude e mais precisão na colheita e na adega. Luciano se tornou o que a literatura enológica chama de “barolos boys”, um movimento que chacoalhou a região, buscando incorporar novas tecnologias, tornando até hoje difícil definir a tênue linha entre modernistas e tradicionalistas.
Manteve um pé no moderno e outro na tradição. Barolos eram fermentados por até 30-50 dias, o que gerava vinhos extremamente tânicos e duros na juventude. Sandrone reduziu esse tempo para cerca de 10-12 dias, com controle rigoroso de temperatura, preservando o frescor da fruta e suavizando os taninos. Entre os toneis dos tradicionalistas e as barricas francesas de 228 litros de modernistas, ficou no meio caminho: com barris de 500 litros para envelhecer seus vinhos.
Em 1990, um de seus vinhos recebeu 100 pontos, a nota máxima dada pelo crítico norte-americano Robert Parker. O reconhecimento fez com que pudesse se concentrar apenas em sua vinícola, que em 1999 deixou a garagem e ganhou espaço próprio.
Luciano morreu em 2023. Antes, em 2017, fez uma alteração histórica no seu rótulo mais famoso: Cannubi Boschis foi batizado de Aleste, a junção dos nomes da terceira geração, Alessia e Stefano, filhos de Barbara. Alessia trabalha na vinificação, Stefano estuda economia agrária. Integram a terceira geração da vinícola familiar, cuja produção é de pouco mais de 140 mil garrafas. “Sempre foi uma preocupação manter a produção familiar”, diz. O ambiente mudou nas últimas décadas.

Barbara Sandrone, filha de Luciano Sandrone, em entrevista ao Pantagruélicas.
Um hectare de terra em Barolo custa milhões de euros e atrai o olhar de empresários do mundo todo em um ambiente que tradicionalmente estava nas mãos de agricultores. “Por enquanto a região tem conseguido manter suas raízes, mas há muitos empresários que cobiçam a região para fazer vinhos”, diz Barbara.
Não é a única ameaça. O aquecimento global tem mudado não apenas a data das férias da família, mas também trazido outras preocupações: redes de proteção têm sido colocadas para evitar que a irradiação solar provoque manchas nas videiras e traga doenças. Ainda não é possível avaliar a nova técnica. “Nos últimos três anos, foi uma sucessão de eventos, um ano teve muita chuva, em outro, muito sol, em outro granizo”, afirma. A data de colheita em um ano pode ser em outubro, em outro, em novembro.
Com grande potencial de envelhecimento, os barolos são vinhos que ganham com anos ou décadas de adega. A nova geração tem paciência? “Sim, mas temos visto que muitos nos Estados Unidos, depois da pandemia, passaram a dar menos atenção à enogastronomia. O vinho italiano ganha muito com a comida. Já os asiáticos estão cada vez mais atentos a combinar sua culinária com nossos vinhos”, diz Barbara, que depois do Brasil tem viagem marcada para o Japão. A garagem da família Sandrone ganhou o mundo.