uma pequena introdução
Este texto nasceu de uma conversa com uma amiga, discutimos,com carinho, quem teria feito mais: eu, que pintei o estandarte, ou ela, que o carregou?
Ela dizia que sem a imagem não haveria nada, já eu eu respondia que sem a coragem dela tudo seria só pano pintado. No fundo, o que descobrimos é que nenhum gesto se basta.
Que toda criação precisa de alguém que a leve, e que toda travessia começa com um risco.
Esse texto não é para ela, é para todos que já ousaram fazer, levar, olhar
e, mesmo sem saber se daria certo, ainda acreditaram
agora o texto
Imagine a vida como um palco, imagine agora três indivíduos, eles não entram juntos no palco, chegam em tempos diferentes. Às vezes nem se conhecem, mas, se tudo der certo, encontram-se numa encruzilhada qualquer e alguma coisa no mundo se move.
O artista, o ativista-transmissor e o ativista-espectador. Não são papéis fixos, nem postos sociais são posições existenciais, forças que dançam em torno de um mesmo centro: o gesto que cria e deseja existir para além de si.
O artista é aquele que começa, nem sempre sabe o que faz, mas sente que precisa fazer. Move matéria, torce o tempo, repuxa ideias do fundo escuro da alma ou da superfície áspera da rua. Pinta, escreve, corta, grava, dança, molda, ele é o primeiro a tocar aquilo que ainda não tem nome, mas que já pulsa.
Faz por necessidade, mas também por amor — ou por raiva, que às vezes é a mesma coisa em estado bruto.
Mas o artista, por mais que faça, não termina nada sozinho, porque fazer, nesse caso, não é o fim: é o começo, a obra está viva, mas ainda não anda.
É aí que entra o segundo sujeito: o ativista-transmissor.
Essa figura muitas vezes é ignorada. Não aparece nos créditos, não sobe ao palco, não assina a autoria. Mas é quem leva a coisa adiante. O transmissor é aquele que enxerga o que está ali e diz: “isso precisa ir para o mundo”. E leva.
Pode ser um militante que imprime o cartaz e cola na cidade. Pode ser quem grita o poema numa assembleia. Pode ser quem transforma a ideia em palavra de ordem, em faixa, em convocatória.
É ele quem carrega o estandarte. E o estandarte não é símbolo decorativo: é peso. É promessa. É risco.
Quem ergue um estandarte se expõe. Não só aos olhos — também aos tiros, à zombaria, ao silêncio. O transmissor tem coragem de ser meio.
Pois quem levanta o estandarte cumpre uma função, a de garantir o vir a ser do ser aí, mas que isso, mundificar o mundo.
E há o terceiro sujeito, o espectador.
Mas não qualquer espectador.
É o ativista-espectador: aquele que vê e, ao ver, é atravessado.
O que escuta não só com os ouvidos.
O que é convocado — às vezes contra a vontade — a se mover por dentro.
A ideia o encontra, e algo muda. Pode ser pequeno, quase imperceptível.
Mas é esse quase que importa.
Porque a obra só se cumpre se alguém a recebe.
Não basta fazer.
Não basta levar.
É preciso que alguém acolha — mesmo que seja para rejeitar depois.
É o receptor que põe a obra à prova no mundo material.
Esses três sujeitos formam uma cadeia, ou melhor, uma espiral.
Não é linear.
Não há garantia de que aconteça.
Às vezes o artista faz, mas ninguém leva.
Às vezes alguém leva, mas ninguém olha.
Às vezes alguém olha, mas não vê.
E então, o que se fez?
Aí mora a angústia.
Porque, sim, é possível criar e não ser ouvido.
É possível erguer e não ter com quem dividir o peso.
É possível olhar e não ser tocado.
E se não houver receptor?
Se não houver quem carregue?
Se não houver praça, nem olhos, nem corpo que se abale?
O escândalo de hoje pode virar moldura amanhã.
Ou a moldura de ontem pode ser o escândalo de hoje.
E o que queimou ontem hoje já se converteu em cinzas.
A arte revolucionária de ontem pode virar souvenir.
Mas ainda assim, é preciso fazer.
Porque há uma dignidade na tentativa.
Há quem diga que o objetivo do artista é a exposição.
Isso é triste.
Exposição é o cercado da arte domesticada.
O lugar onde a obra não grita mais, só sussurra entre molduras e legendas.
Ali, o estandarte não pesa.
Ele decora.
Mas há obras que recusam esse destino.
Que resistem à parede branca.
Que querem chão, corpo, vento, multidão.
E para isso, precisam de alguém que as leve.
Levar, nesse caso, não é divulgar.
É tornar-se parte.
É deixar que a obra se instale no peito e caminhe com as próprias pernas, agora no corpo de outro.
O transmissor é esse outro corpo.
Às vezes é o próprio artista.
Às vezes é quem olha e se transforma.
Não importa.
O que importa é que, em algum momento, alguém diga: “isso é meu também”.
E então nasce o estandarte.
Ele não é leve.
Não é bonito.
Não é símbolo morto.
É promessa viva.
Quem carrega um estandarte não o faz por vaidade.
Faz porque não pode mais não fazer.
Porque, ao ver, foi convocado.
Porque, ao tocar, foi transformado.
Mas é preciso cuidado:
a linguagem não está contida no idioma.
Ela é maior.
É pele, gesto, silêncio, ruptura, suor.
É oceano de signos, não só letras.
É o que há antes da fala e depois do grito.
Se não houver quem fale essa linguagem, a obra se cala.
Se não houver quem a ouça com o corpo inteiro, a obra se perde.
É por isso que criar é arriscar.
É lançar uma corda no escuro e torcer para que alguém a segure.
É entregar algo de si para que o outro talvez devolva transformado.
Não há garantias.
Mas também não há outro caminho.
A criação, o transporte e o acolhimento:
esses três gestos sustentam o ciclo da arte viva.
Arte que não se satisfaz em si mesma.
Arte que não quer aplauso, mas efeito.
Não quer vitrine, mas rua.
Não quer só exposição: quer expressão, expansão, explosão.
E no meio disso tudo, o artista continua.
Fazendo.
Mesmo sem saber se haverá quem leve.
Mesmo sem saber se haverá quem veja.
Fazendo porque precisa.
Porque ainda acredita que um gesto pode ser semente.
E que talvez, mesmo que não hoje, alguém — em algum tempo — a regue amanhã com o suor que sobrou ontem, e se faça flor.