O enfrentamento das desigualdades sociais, econômicas, políticas e culturais marca a realidade de uma parcela significativa de brasileiros, cuja luta cotidiana pela sobrevivência é atravessada pela negação de valores éticos fundamentais e pela ausência de garantias mínimas de dignidade humana. A Constituição de 1988, ao propor sistemas federativos de gestão de políticas públicas essenciais a partir da experiência pioneira de construção do Sistema Único de Saúde (SUS), abriu caminho para uma governança articulada entre responsabilidades institucionais, investimentos orçamentários e o cumprimento de metas de cobertura por meio de serviços e cuidados prestados à população pelos três entes federativos.

A complementaridade, afiançada pela legislação federal, tem causado incômodo a alguns governantes estaduais e municipais, que defendem a autonomia como salvaguarda da iniciativa própria – entendida como expressão de sua ação governamental voltada ao reconhecimento popular e a interesses eleitorais. Em São Paulo, a governança interinstitucional entre os entes federal e estadual apresenta dissonâncias na condução do Sistema Único de Assistência Social (SUAS).

O Projeto de Lei nº 482/25, apresentado na Assembleia Legislativa de São Paulo com o alegado propósito de combater a pobreza, tem um título impactante: ­“SuperAção”. Trata-se da provisão de agentes sociais para acompanhar nas moradias – semanal e quinzenalmente – beneficiários do programa Bolsa Família. O objetivo é fazer com que eles adquiram condições próprias de sustento pelo trabalho individual, com a consequente desvinculação das políticas de transferência de renda. Uma antítese da Renda Básica.

Não há razoabilidade na justificativa apresentada pelo governo para a criação de uma lei de acompanhamento de beneficiários pelo Centro de Referência de Assistência Social (Cras), que já tem essa atribuição institucional, por coordenar o Programa de Atenção Integral à Família (Paif). Trata-se de uma ação de proteção básica, prevista no SUAS, que é operado pelos municípios, sob um sistema federativo de financiamento tripartite.

A introdução de agentes sociais no âmbito do Paif – executado por servidores concursados – não é matéria apropriada para uma lei estadual, ainda mais quando o próprio texto legal não esclarece o regime de contratação desses profissionais. De fato, especialmente em grandes cidades como São Paulo, há carência tanto de equipes quanto de unidades do Cras. Filas para acesso ao Cadastro Único para Programas Sociais, o CadÚnico, tornaram-se uma cena comum, evidenciando a sobrecarga dos serviços e a necessidade de investimentos estruturantes, não medidas paliativas.

Em março de 2025, o Programa Bolsa Família contabilizava 2.461.256 inscritos no estado de São Paulo, com renda per capita de até 218 reais, segundo o CadÚnico. O projeto SuperAção, no entanto, prevê inicialmente o atendimento de apenas 35 mil famílias – o equivalente a 0,9% do total –, com a meta de alcançar 105 mil em dois anos (2,7%). Trata-se, portanto, de uma cobertura amostral, não universal. Esse caráter exploratório não é condizente com o porte de uma lei estadual. Além disso, a proposta carece de embasamento técnico, pois ignora os próprios dados do CadÚnico.

Essa incidência tão diminuta expressa um não compromisso estatal com a proteção social, como exige o SUAS. Em 2023, foram encerrados programas estaduais de transferência de renda dirigidos a famílias, jovens e idosos, com a supressão de recursos orçamentários desde então.

O “SuperAção” reproduz velhos preconceitos em relação aos pobres e possui precário arcabouço legal

O Projeto de Lei nº 482/25 apresenta um vazio de cobertura que o torna essencialmente experimental, cuja regulação caberia a uma portaria ou a um eventual decreto. O SuperAção tem um desenho altamente seletivo, que foge do escopo de uma lei de atenção social. A proposta de atuação intersetorial entre órgãos do Estado, incluída no programa, representa um avanço. No entanto, configura uma regulação de governança, uma articulação experimental no modo de governar que dispensa lei.

A iniciativa caminha na direção do apoio à filantropia e à ação social voluntária movida por primeiras-damas. Ela revela traços de negacionismo científico em relação à atuação multiprofissional para a proteção social, além de negar o reconhecimento legal e social dos direitos humanos e sociais. Verifica-se, assim, uma inconsistência no compromisso legal e operacional do governo de São Paulo com o SUAS, e por dois motivos principais:

1. A Constituição Estadual de São Paulo nega a política constitucional de Assistência Social. A Seção III do Capítulo II (artigos 233, 234, 235) é nominada Promoção Social, em flagrante oposição ao campo da Seguridade Social, no qual se assenta proteção social básica e especial da Assistência Social. A PEC nº 04/2014, que visa corrigir essa distorção, aguarda há 11 anos sua segunda votação na Assembleia Legislativa, perpetuando essa impropriedade jurídica;

2. A gestão estatal da assistência social desrespeita a Lei Orgânica da Assistência Social (Loas), de 1993, e a Lei nº 12.435/2011, que institui o Sistema Único de Assistência Social. Somente dois estados brasileiros não aprovaram lei estadual do SUAS: Tocantins e São Paulo.

A proposta do SuperAção ignora essas inconsistências legais na governança da assistência social no estado. Caberá aos municípios – e, neles, aos trabalhadores do SUAS – a difícil tarefa de expor essas fragilidades para os cidadãos e cidadãs. Embora o SuperAção se apresente como parte do Paif, operado pelos municípios sob um sistema federativo de financiamento tripartite, sua institucionalidade é precária.

É preciso que o SuperAção atue perante o SUAS para que possa deixar de ser uma hipótese, ou experiência isolada, e se constitua, de fato, como uma política pública comprometida com a garantia da dignidade humana de cidadãos e cidadãs, nos termos de um Sistema Único federativo. •


*Assistente social, professora titular sênior da PUC de São Paulo e pós-doutora pela Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra.

Publicado na edição n° 1365 de CartaCapital, em 11 de junho de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Marketing eleitoral’

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Last Update: 05/06/2025