A arqueóloga Niède Guidon faleceu aos 92 anos, na cidade de São Raimundo Nonato, sertão do Piauí, onde morava. Niède nasceu em Jaú (SP), formou-se em história pela Universidade de São Paulo (USP) na década de 1950 e mudou-se para a França onde passou a lecionar. Voltou ao Brasil na década de 1970 e ao chegar conheceu as pinturas rupestres da região de São Raimundo Nonato, no semiárido piauiense.

Niède concluiu o doutorado em Pré-história, em 1975, na França, apresentando sua tese sobre pinturas rupestres em Várzea Grande, Piauí. Desde então dedicou sua vida às pesquisas nessa região, as quais foram fundamentais para a criação do Parque Nacional da Serra da Capivara, criado em 1979, hoje administrado pela Fundação Museu do Homem Americano (Fumdham), criada em 1986. O Parque, com 179 mil hectares é considerado o território com o maior número de sítios arqueológicos das Américas e patrimônio cultural da humanidade pela Unesco.

As pesquisas na região indicaram a existência de ossadas humanas de 15 mil anos, pinturas rupestres de 35 mil anos e restos de fogueiras de 48 mil anos, dados que levaram a pesquisadora a defender a hipótese de que o homem chegou ao território americano pela África, contrariando a tese até então dominante na arqueologia americana, segundo a qual o homem aqui chegou pelo Estreito de Bering por volta de 13 mil anos atrás, proveniente da Ásia. Considerando o material arqueológico resgatado no Piauí e os estudos realizados, a pesquisadora concluiu que a presença humana na região data de cerca de 100 mil anos.

Niède Guidon e suas conclusões enfrentaram os ceticismos de parte da comunidade científica internacional e nacional, que por muito tempo relutou em aceitar suas evidências que contrariavam o “Consenso de Clóvis”. Como mulher em um ambiente científico predominantemente masculino e em uma época de ainda maior machismo estrutural, sua firmeza e determinação foram fundamentais para defender suas descobertas e consolidar um novo paradigma que revolucionou a história do homem americano e da arqueologia. Sua luta ecoa a de tantas outras mulheres que desafiam as estruturas opressoras em busca de conhecimento e transformação.

A Fundação Museu do Homem Americano (Fumdham) é responsável pela administração da infraestrutura do Parque, incluindo dois museus, o museu do homem americano e o museu da natureza, além de centros de visitação e quilômetros de trilhas que dão acesso a centenas de sítios arqueológicos. De forma inovadora, promoveu a capacitação e contratação, prioritariamente de mulheres das comunidades locais para trabalhos no parque. A Cerâmica Serra da Capivara faz parte do conjunto de ações empreendidas na região, com geração de renda nos municípios que compõem o parque.

Niède é responsável também pela articulação que resultou na criação de cursos de graduação em Arqueologia na Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf), em São Raimundo Nonato e na Universidade Federal do Piauí (Ufpi), em Teresina.

Combatividade e contradições

O falecimento de Niède Guidon representa a perda de uma cientista combativa, cuja obra confrontou dogmas e desafiou estruturas cristalizadas. Neste momento de dor, expressamos nossa solidariedade aos familiares, amigos, trabalhadores da Fumdham e a todos que admiravam o trabalho e a força de Niède Guidon. Seu legado de conhecimento, resistência e amor pela ciência permanecerá vivo.

No entanto, é necessário ver de forma crítica os limites e contradições do projeto da Fundam. A gestão do parque, sob sua liderança, priorizou a conservação ambiental sem o devido diálogo com as populações locais.

Famílias de povos tradicionais foram deslocadas e práticas culturais populares foram restringidas em nome da preservação, sem a devida consideração pelas necessidades materiais dos trabalhadores e trabalhadoras da região. Essas ações refletem um modelo de gestão que, ainda que bem intencionado, acabou por reproduzir práticas autoritárias e elitistas de preservação ambiental, que contavam com total apoio dos grupos políticos dominantes locais.

A defesa da ciência pública a serviço dos trabalhadores é um pilar estratégico. A batalha pela preservação da Serra da Capivara é urgente, assim como a defesa do meio ambiente no Piauí em outras imensas áreas atualmente sob ameaça do desmatamento para implantação de carvoarias, extração de minérios e projetos ditos “verdes” como a energia eólica, solar e “hidrogênio verde”, a serviço do grande capital. Para além das limitações do projeto da Fumdham, é preciso lutar contra o modelo de desenvolvimento capitalista que devasta o meio ambiente e ignora as necessidades das comunidades locais em todo o Piauí.

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Last Update: 05/06/2025