Mercosul em tempos de incerteza: como o bloco tem atuado para expansão de novas oportunidades
Por Júlia Reis, Giovanna Camily Rossato, Giovana Mello Marcandalli, Marcos Eduardo Ribeiro e Kayque Ferraz
A despeito das incertezas, o Mercosul segue com sua pauta econômica e continua sendo estratégico tanto à inserção comercial de agentes internos dos Estados membros, quanto como um mercado em disputa por atores externos.
INTRODUÇÃO
Nos últimos anos, o Mercosul tem enfrentado momentos de incerteza. Especialmente, nos temas de cooperação cultural, social e política, que haviam sido explorados entre os Estados-membros até meados dos anos 2010. A instabilidade política na região, os golpes, as mudanças de governos e os impactos dos acontecimentos internacionais – as crises, o crescimento chinês, as guerras e as eleições americanas – são alguns dos elementos recentes da cena política internacional que têm contribuído para os rumos do bloco mercosulino.
A despeito dessas incertezas, o Mercosul segue com sua pauta econômica e continua sendo estratégico tanto à inserção comercial de agentes internos dos Estados membros, como a indústria e o agronegócio, quanto a um mercado em disputa por atores externos, como por exemplo, para europeus, estadunidenses, chineses e japoneses. Nesse sentido, o bloco mercosulino, mesmo enfrentando incertezas, permanece sendo importante a nível local, regional e internacional.
Neste breve texto, trouxemos o status da relação do Mercosul com alguns de seus principais parceiros econômicos, como China, Europa, EUA e Japão, que, hoje, têm aparecido na estratégia brasileira de expansão de parcerias no âmbito do Mercosul. Como parte de sua política externa, o Brasil tem tentado aprofundar essas frentes para o bloco regional. Contudo, cabe ressaltar, essas são agendas conjunturais, são possibilidades de aprofundamento de parcerias que estão à mesa e, portanto, sujeitas a idas e vindas.
MERCOSUL – CHINA
Desde o ano passado, um Acordo de Livre Comércio (ALC) entre o Mercosul e a China vem sendo objeto de discussão e estudo pelos países envolvidos. O multilateralismo, uma prioridade mercosulina, também desperta grande interesse da China, que busca ampliar seus mercados, com especial atenção ao brasileiro, promovendo um fortalecimento de laços entre os países do Sul global e os Estados membros do BRICS.
As tratativas sobre o possível ALC tiveram início em 2024, com reuniões promovidas de forma entusiasta com o gigante asiático pelo presidente do Uruguai, Luis Lacalle Pou, visando aprofundar o relacionamento com a China. Como desdobramento desse esforço, em agosto de 2024, Montevidéu sediou a VII Rodada do Mecanismo de Diálogo entre Mercosul e China durante a presidência pró-tempore uruguaia do bloco. O encontro contou com a participação de altos representantes dos membros do Mercosul e da vice-chanceler chinesa, Hua Chunying. Na ocasião, Uruguai e China reiteraram seu interesse no ALC, e Pequim comprometeu-se a apresentar um plano para intensificar o diálogo com o Mercosul nos próximos meses, focando inicialmente em pontos de comum acordo.
O entusiasmo do Uruguai reflete a liderança da China como maior mercado de exportação latino-americano. No entanto, encontra dificuldade dentro do bloco, já que o foco dos outros membros está no Sistema de Associação e Livre-Comércio Mercosul-União Europeia (SAALC Mercosul-UE). Muito embora Montevidéu também tenha interesse, a insistência no avanço para um acordo com a China incluiu até diálogos bilaterais.
A importância econômica do ALC também foi objeto de análise pelo Conselho Empresarial Brasil-China, que promoveu estudos sobre os impactos do acordo nos cinco países envolvidos e, dentre eles, indicou que o PIB brasileiro cresceria 1,43%, o maior aumento entre os membros do Mercosul (US$30 bilhões). Ademais, haveria aumentos de 7,3% em investimentos; 7,1% em exportações; 9,4% em importações e 1,26% de aumento real de salários. Os ganhos do PIB de Argentina, Paraguai e Uruguai seriam de 2,58%, 2,16% e 3,49%, respectivamente, evidenciando as razões para o interesse uruguaio. Já o PIB chinês teria incremento de 0,07%.
No entanto, a leva de benefícios não abrangeria todos os setores dos latino-americanos. Enquanto o agropecuário tende a crescer, reforçando a condição do bloco como exportador de produtos primários, o industrial demonstra preocupações. Para usar o caso brasileiro de exemplo, o setor primário esperaria um ganho de produção de US$ 14,6 bilhões, enquanto o secundário lidaria com perdas estimadas em US$ 6,7 bilhões. Líderes industriais identificaram que este último já enfrenta uma “invasão chinesa”, destacando que o acordo poderia ampliar o acesso de produtos chineses ao mercado mercosulino, dificultando o desenvolvimento das indústrias nacionais dos países do bloco.
Nesse cenário, é notório que o acordo, além de concessões comerciais, necessitaria da ampliação de fluxos de investimentos para os países do Mercosul para funcionar, aproximando-os ainda mais da China. A criação de cadeias produtivas regionais, tecnologia e investimentos também constituem debates de interesse nas discussões entre o Montevidéu e Pequim. Enquanto os defensores do ALC apontam para o momento propício, alertando para o risco dos países mercosulinos ficarem de fora de grandes acordos internacionais e virem a ser suplantados por outras nações, os críticos enfatizam os riscos estruturais internos e de desindustrialização.
MERCOSUL – UNIÃO EUROPEIA
A recém-concluída negociação do SAALC Mercosul-UE coloca em perspectiva a importância das relações comerciais entre dois dos principais blocos comerciais do mundo, que juntos reúnem 718 milhões de pessoas e um PIB de 22 trilhões de dólares.
Em 2023, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) realizou um estudo que estimou a alíquota setorial das relações bilaterais entre os blocos econômicos. A partir dele seria possível caracterizar a natureza comercial dessa relação, o que implica no modo como certos grupos econômicos vêm reagindo às tratativas do novo acordo. Das tarifas aplicadas pela UE ao Brasil e demais países do Mercosul (tal como seccionado pelo estudo), destacam-se os valores mais altos destinados ao setor do agronegócio, em produtos como trigo, carne de bovinos, arroz processado e laticínios, em alguns casos as tarifas são superiores aos 30%. Por sua vez, o mercado do Mercosul está mais aberto aos produtos europeus, apresentando tarifas relativamente mais baixas, rodeando uma média estimada de 15%, com exceção do setor têxtil que encontra uma barreira tarifária mais elevada na região.
O estado atual das relações comerciais expressa o caráter mais protecionista do mercado europeu frente aos produtos mercosulinos, especialmente no setor agropecuário, bastante exemplificado pelo comportamento da frente liderada pela França, que evidencia o desagrado pelos termos do novo acordo e, por sua vez, busca alcançar uma maior desgravação tarifária desse ramo.
Vinhas de Souza (2023), tratando das oportunidades do mercado brasileiro em suas relações com o bloco europeu, enfatiza os preceitos cepalinos emoldurados nos trabalhos de Raúl Prebisch e Celso Furtado quanto aos benefícios da parceria para a política industrial brasileira. Embora o autor trate especificamente do caso brasileiro, o mesmo vale para os vizinhos, o fluxo de comércio especializado em produtos de baixo valor agregado pode limitar os efeitos de desenvolvimento interno para os países da região. Em 2024, os principais produtos exportados para a UE foram petróleo cru, café e soja e seus derivados, traçando a mesma tendência de anos anteriores. Em contrapartida, petróleo refinado e produtos farmacêuticos compõem o maior volume das importações realizadas por membros do Mercosul. Esse é o plano sobre o qual se desenvolveram as negociações para o SAALC Mercosul-UE, indicando que uma revisão das atuais condições da relação comercial pode gerar benefícios mútuos de crescimento.
Nessa tona, as associações industriais do Mercosul indicaram o entusiasmo pela conclusão do acordo. Em uma declaração realizada durante o 11º Fórum Empresarial do Mercosul, a União Industrial Argentina (UIA), a Confederação Nacional da Indústria (CNI) do Brasil, a União Industrial Paraguaia (UIP) e a Câmara de Indústrias do Uruguai (CIU) afirmaram que o Acordo é a oportunidade de construir uma associação birregional moderna capaz de aumentar o comércio, incentivar o investimento e fomentar a inovação e a capacidade produtiva.
O debate a respeito dos termos do Acordo gera animosidade entre os mais diversos grupos econômicos, políticos e intelectuais, quanto aos benefícios econômicos, políticas ambientais e ao contexto internacional adverso em que ele está presente. De qualquer maneira, ambas as partes parecem comprometidas a remar contra a maré da agravação tarifária, como evidenciado na declaração realizada pela Comissão Europeia em 6 de março deste ano. Além disso, a aproximação com novos parceiros estratégicos junto a políticas compensatórias internas pode elevar o patamar do atual estado da relação entre Mercosul e União Europeia.
MERCOSUL – EUA
Embora o governo Obama (2009–2017) tenha conduzido uma retórica de reaproximação com a América Latina, na prática, os EUA mantiveram uma postura cautelosa em relação aos blocos regionais emergentes. No primeiro governo Trump (2017–2021), a relação esfriou ainda mais, com políticas protecionistas e uma abordagem “America First” que minou a cooperação com blocos regionais. O segundo mandato de Trump iniciado em 2025 deu continuidade a essa agenda, impondo novas barreiras tarifárias e tensionando ainda mais os vínculos comerciais com os países do Mercosul. Nesse novo contexto internacional, o impacto para o Mercosul foi imediato. Uma das primeiras ações de Trump foi a revogação das isenções tarifárias concedidas durante o governo Biden, o que afetou significativamente as exportações do bloco. Os mercados de aço, alumínio, etanol, e biodiesel sofrem com a imposição de tarifas mínimas de 10%, sinalizando uma guinada protecionista agressiva.
Essas medidas aprofundaram as fissuras internas dentro do Mercosul, revelando posturas divergentes entre os Estados membros. A Argentina, sob o governo neoliberal de Javier Milei, reagiu com entusiasmo ao novo cenário, enviando emissários a Washington para negociar um acordo bilateral, mesmo que isso represente o risco de violar as regras do bloco. Já o Brasil, liderado por Lula, reagiu de forma contrária: buscou acelerar SAALC Mercosul UE, reforçou sua atuação na CELAC e apostou em mecanismos multilaterais alternativos, como o BRICS+, para conter os impactos das novas tarifas.
Enquanto isso, o Uruguai, presidido desde março de 2025 por Yamandú Orsi, da coalizão de centro-esquerda Frente Ampla, tem sinalizado interesse em preservar os vínculos regionais e comerciais do bloco, mantendo cautela nas relações com os EUA. Já o Paraguai, liderado por Santiago Peña desde 2023, possui uma postura conservadora e alinhada ao ex-presidente Horacio Cartes, seu principal apoiador. Peña é considerado um dos líderes latino-americanos mais próximos de Donald Trump. Seu governo tem buscado fortalecer os laços com Washington e apoiado pautas conservadoras no cenário internacional. Em 2025, o Paraguai chegou a retirar a candidatura de seu chanceler à secretaria-geral da OEA, após perder apoio de países como Brasil e Uruguai, que criticaram sua proximidade com a nova administração estadunidense.
Essas divergências internas afetam diretamente a capacidade do Mercosul de formular uma estratégia coesa frente aos EUA. Enquanto Brasil e Uruguai tendem a uma abordagem mais cautelosa e multilateral, Paraguai e Argentina demonstram maior abertura a vínculos bilaterais diretos com Washington, ainda que por motivos distintos. Em meio às incertezas globais, o futuro da relação entre o Mercosul e os EUA dependerá da capacidade dos Estados membros de articularem posições comuns e de aproveitarem pragmaticamente as oportunidades que podem surgir com a nova administração Trump.
MERCOSUL – JAPÃO
Entre 24 e 27 de março, o presidente Lula visitou o Japão, antes de seguir viagem ao Vietnã. O presidente valeu-se de sua capacidade diplomática para que a comitiva brasileira, formada por ministros, senadores e empresários, realizasse uma reunião bilateral com o Primeiro-Ministro do Japão, Shigeru Ishiba, da qual resultou uma série de atos assinados nos temas de economia digital, produtividade e sustentabilidade, meio ambiente, educação e mobilidade científica, entre outros. No evento Fórum Empresarial Brasil-Japão, a CNI e a Kendaren, representação da indústria japonesa, entregaram aos representantes brasileiro e japonês uma declaração conjunta em que pediram a negociação de um Acordo de Parceria Econômica Japão-Mercosul.
Os líderes dos dois Estados frisaram que há intenção em avançar com um acordo dessa natureza. Para Ishiba, “Japão e Brasil exercerão liderança na criação rápida de uma estrutura de parceria estratégica Japão-Mercosul e dentro dessa estrutura avançarão nas discussões para aprofundar as nossas relações comerciais”. Lula também indicou que “como presidente do Mercosul, a partir do segundo semestre, vou trabalhar para que a gente possa fazer acordo com o Japão”.
O avanço em novos acordos pode somar à estratégia brasileira de diversificação de parceiros comerciais em um cenário global de guerras tarifárias. Assim como a própria viagem do presidente à Ásia é um indicativo da expansão e fortalecimento das relações brasileiras com outros parceiros internacionais, a intencionalidade de ampliação das relações Brasil-Japão, tanto no âmbito do Mercosul, quanto do âmbito bilateral, demonstra uma estratégia de política externa que busca alternativas por meio da diversificação.
A escolha parece agradar setores internos, como a indústria e o agronegócio exportador brasileiro. Ambos fizeram parte da comitiva brasileira ao Japão e, em uníssono, demonstraram contentamento com os possíveis avanços. Para os exportadores de carne brasileiros, por exemplo, a abertura do mercado japonês seria um grande avanço e um feito aguardado há mais de 20 anos. Ricardo Alban, presidente da CNI, indicou que “neste momento de incertezas, é fundamental abrirmos mais frentes para nos aproximarmos dos parceiros. O acordo [Japão-Mercosul] traria muitas vantagens aos dois países”. A proposta assinada também pelos industriais japoneses reafirma que a busca por novas parcerias comerciais permite ao setor ampliar seus mercados, fortalecer relações econômicas e avançar em temas estratégicos como a produção de combustíveis renováveis, por exemplo.
CONCLUSÃO
Foi possível observar que, tanto as transformações políticas internas quanto a atual conjuntura de incertezas exigem que o Mercosul amplie sua estratégia de inserção internacional, considerando novas possibilidades de acordo, bem como o aprofundamento das relações existentes.
Dessa maneira, os mercados europeu, chinês, estadunidense e japonês apresentam um horizonte de expectativas para as relações comerciais do Mercosul. A proatividade que o presidente Lula da Silva procurou resgatar na atuação do Brasil incita o ânimo de setores econômicos internos para a expansão de mercados, mesmo diante das ameaças feitas pelo presidente argentino Javier Milei e das incertezas trazidas pelas medidas unilaterais de Trump no início de 2025.
O plano estratégico que o Mercosul indica seguir, num cenário de guerra comercial, é o de diversificação de parcerias por meio de acordos de livre comércio. No segundo semestre de 2025, o Brasil assumirá a presidência temporária do bloco, uma oportunidade para o corpo diplomático brasileiro movimentar uma agenda de facilitação de acesso ao mercado internacional e de fortalecimento interno e regimental do Mercosul.
REFERÊNCIAS
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VINHAS DE SOUZA, Lucio. O que pode a UE oferecer ao Brasil?. CEBRI-Revista Ano 2, Número 6 (Abr-Jun). Publicado online. Disponível em: https://cebri.org/revista/br/artigo/83/o-que-pode-a-ue-oferecer-ao-brasil. Acesso em: 26 mai. 2025.
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