Foi sob a justificativa de “acelerar o progresso” e “destravar o desenvolvimento” que o Senado aprovou, em maio, o projeto de lei apelidado de “PL da Devastação”. O nome não veio à toa: trata-se de um conjunto de mudanças que desmonta, com brutalidade cirúrgica, a legislação ambiental urbana e rural brasileira, incluindo artigos centrais do Estatuto da Cidade, da Política Nacional do Meio Ambiente e do Código Florestal. Mas o que muitas manchetes não revelaram é que essa proposta também representa uma bomba-relógio contra o direito à moradia digna, especialmente para a população negra e periférica.

O projeto reduz drasticamente a exigência de estudos de impacto ambiental e de vizinhança, permitindo que grandes empreendimentos urbanos avancem sobre áreas sensíveis, comunidades tradicionais, favelas, zonas de manancial e territórios de preservação cultural. Na prática, libera o mercado imobiliário de qualquer obrigação de respeitar o tecido social que já habita os espaços urbanos e naturais. O solo urbano vira mercadoria bruta, e quem mora ali, um empecilho a ser removido.

No Brasil, onde o déficit habitacional ultrapassa os seis milhões de domicílios, segundo a Fundação João Pinheiro, essa “liberação” não significa mais casas ou mais moradias. Significa, sim, mais despejos, mais remoções, mais violência institucional. Significa, também, o aumento da especulação imobiliária, da grilagem, da verticalização desenfreada em nome de uma falsa modernidade. A cidade se transforma em campo de batalha – e os moradores pobres, em seus alvos preferenciais.

O texto do PL é habilmente genérico. Não nomeia as favelas, não cita quilombos, não menciona o povo. Mas todo o seu desenho jurídico cria caminhos para que sejam esses corpos racializados, empobrecidos e historicamente marginalizados os primeiros a sofrer. Não há mecanismo de salvaguarda, não há consulta prévia às comunidades afetadas, não há sequer a exigência de compensações adequadas. É uma legalização da injustiça territorial em nome de uma ideia de progresso que serve a poucos.

Se a aprovação no Senado se concretizar — o texto voltou à Câmara —, o PL da Devastação se tornará o mais agressivo retrocesso ambiental e urbano desde a redemocratização do Brasil. Não estamos falando apenas da destruição das matas ou da morte dos rios urbanos. Estamos falando da destruição do futuro de milhões de brasileiros, condenados a perder suas casas, seus territórios, seus vínculos comunitários – e sua dignidade.

Remoções silenciosas e o apagamento dos corpos invisíveis

O discurso do “desenvolvimento sustentável”, tão presente nos planos diretores e nas políticas públicas nas últimas décadas, perde qualquer sentido diante dessa proposta. A sustentabilidade, aqui, foi reduzida a um slogan publicitário que justifica a remoção de comunidades inteiras para dar lugar a condomínios de alto padrão, centros comerciais e corredores de transporte que não atendem à periferia. Em vez de inclusão urbana, temos expulsão planejada.

A tragédia se repete com nomes diferentes em cada cidade: no Rio de Janeiro, são os moradores da Vila Autódromo; em Belo Horizonte, as famílias da Ocupação Izidora; em Salvador, os quilombolas de Ilha de Maré e os pescadores da Gamboa. O que há em comum? A tentativa de apagar a história, a cultura e a resistência de quem insiste em habitar a cidade com dignidade. O PL da Devastação institucionaliza esse apagamento.

E há um agravante: o projeto elimina a obrigatoriedade de avaliação de impactos sociais e culturais nos processos de licenciamento. Ou seja, nem mesmo a existência de patrimônio imaterial ou modos de vida tradicionais será obstáculo para que o capital avance. O urbano vira deserto de direitos – uma cidade sem povo, projetada para os poucos que podem pagar.

O urbanismo brasileiro, já conhecido por seu daltismo social e racial, torna-se ainda mais cego e violento. Nas entrelinhas do projeto, o que se vê é o aprofundamento de uma lógica colonial: corpos negros, indígenas, ribeirinhos e pobres continuam a ser vistos como descartáveis, como obstáculos ao “progresso”. Suas casas, como barracos. Seus modos de vida, como atraso. Suas presenças, como incômodos.

Trata-se, portanto, não apenas de um projeto de lei. Mas de um projeto de poder. Um pacto entre o Estado e os grandes agentes do capital imobiliário, que deixa explícito de que lado está a máquina pública. O PL da Devastação é, no fundo, uma autorização para matar – matar o rio, a mata, a cultura, a moradia, o direito.

O que está em jogo: a cidade como direito ou como negócio?

A Constituição de 1988 afirma que a moradia é um direito social. O Estatuto da Cidade afirma que a função social da propriedade deve prevalecer sobre a especulação. A Política Nacional de Habitação afirma que o Estado tem dever de garantir acesso justo e seguro à terra urbanizada. Mas o que esse novo projeto faz é implodir todas essas garantias em nome de uma cidade tratada como negócio, e não como direito.

Ao flexibilizar ou eliminar instrumentos como o Estudo de Impacto de Vizinhança, a obrigatoriedade de contrapartidas e a regulação da densidade construtiva, o projeto dá carta branca para que os territórios populares sejam reconfigurados à força, sem diálogo, sem aviso, sem alternativa. Isso agrava o processo de gentrificação, racialização do espaço e aprofundamento das desigualdades.

Além disso, o projeto dificulta sobremaneira a atuação do Ministério Público e da Defensoria Pública em ações de proteção territorial. Ao estabelecer prazos irreais para manifestações técnicas e simplificar as exigências ambientais, o PL cria uma espécie de corredor polonês legal para que as populações vulnerabilizadas percam suas casas antes mesmo de conseguirem ajuizar um processo.

E a quem interessa essa pressa? À mesma elite que sempre se beneficiou da apropriação desigual do solo urbano. Grandes construtoras, fundos de investimento imobiliário e redes corporativas de arquitetura e engenharia urbana já celebram, nos bastidores, os efeitos imediatos da medida. O mercado é ágil. A Justiça, nem sempre. E o povo? Este, muitas vezes, só descobre que perdeu sua casa quando a retroescavadeira já está na porta.

A luta pelo direito à cidade, portanto, ganha novos contornos. Não se trata mais apenas de exigir políticas públicas de habitação, mas de defender o direito de continuar existindo. O direito de não ser apagado, não ser removido, não ser devastado em nome de um futuro que não nos inclui.

Reagir é urgente: entre resistência e reconstrução

Diante desse cenário, movimentos sociais, organizações populares, universidades e parlamentares comprometidos com a justiça urbana têm um papel fundamental: barrar essa proposta, mobilizar as ruas e denunciar seus efeitos perversos. Não basta dizer “não” ao PL da Devastação – é preciso mostrar, com clareza, o que está sendo destruído e quem lucra com isso.

É hora de retomar o projeto constitucional de cidade como espaço de justiça, convivência e pluralidade. Uma cidade onde o direito à moradia vem antes do direito ao lucro. Onde o verde é proteção coletiva, e não recurso de marketing. Onde o território é vínculo e raiz, e não ativo financeiro. Isso não será feito de cima para baixo – será pela base, pela resistência organizada, pela mobilização popular.

É preciso também reinventar os modos de produzir moradia, com foco em autogestão, regularização fundiária participativa, uso de imóveis ociosos, apoio técnico solidário e planejamento territorial antirracista. Porque enfrentar a devastação não é apenas resistir: é também reconstruir. Reflorestar os direitos. Reocupar os centros. Reimaginar os mapas da cidade.

O Brasil já sabe o que é ter sua história interrompida por tratores e cercas. Já sabe o que é ver famílias removidas sob aplausos de empreiteiras. Mas também sabe o que é resistir: nas ocupações, nos mutirões, nas favelas organizadas, nas redes de solidariedade. A cidade viva pulsa onde há povo. A cidade justa nasce onde há coragem de permanecer.

Por isso, este texto é um chamado. O PL da Devastação não é um destino inevitável. É um projeto – e, como todo projeto, pode ser derrotado. Mas, para isso, é preciso que a sociedade compreenda o que está em jogo: o direito à moradia, sim, mas também o direito à memória, ao afeto, à permanência. À cidade como um espaço de vida – e não de lucro.

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Last Update: 04/06/2025