Publicamos o artigo de Bruno Bimbi, que foi do PSOL e hoje gerente Sr. de Estratégia Política da StandWithUs Brasil, para que se entende a retórica do antissemitismo brandida contra toda crítica ao genocídio de Gaza.
São rebatidas estatísticas consideradas falsas, uma ou outra foto adulterada, mas foge-se do principal: a desproporção da reação israelense ao atentado infame cometido pelo Hamas contra civis indefesos – e que serviu de álibi para que um presidente sanguinário promovosse o genocídio de Gaza.
Legitima-se a morte de crianças e mulheres com o inacreditável argumento de que os bombardeios mataram 20 mil guerrilheiros do Hamas. Como se isso absolvesse Israel do massacre de inocentes.
As notas de rodapé são minhas.
Sobre guerras, mentiras, crianças e likes – uma resposta à deputada Sâmia Bonfim
Por Bruno Bimbi
«A principal causa de mortalidade infantil no mundo este ano é Israel», diz uma publicação da deputada Sâmia Bomfim (PSOL-SP) com dezenas de milhares de curtidas. É um delírio, mais um: desde 7 de outubro de 2023, quando os terroristas de Hamas cometeram o maior massacre de judeus desde o Holocausto, levaram mais de 250 reféns e iniciaram esta guerra insana, alguns políticos juram que a culpa de tudo o que acontece no mundo é de Israel.
Cada mentira se apoia nas anteriores. É falso que, como repete cada semana o presidente Lula, a maioria dos mortos na Faixa de Gaza sejam mulheres e crianças: a maioria são homens, na faixa etária dos combatentes – de acordo com as Forças de Defesa de Israel, o Hamas já teve por volta de 20.000 baixas¹. Não é uma guerra “de um exército contra mulheres e crianças”: o Hamas tem dezenas de milhares de soldados fortemente armados, foguetes, explosivos, uma gigantesca rede de túneis, e o apoio do Irã, das milícias xiitas da Síria e do Iraque, dos huthis e do Hezbollah. Desde outubro de 2023, todos eles atacaram o Estado judeu de norte a sul e de leste a oeste, com dezenas de milhares de mísseis, drones e foguetes, além de organizar atentados no seu território. No Oriente Médio, o pessoal não faz ciranda, abaixo-assinados e notas de repúdio: eles matam. Em cada bairro de cada cidade de Israel há refúgios antiaéreos para proteger as pessoas – e por isso, e pelo Domo de Ferro, os mortos não são dezenas de milhares.
Mas é verdade que muitos civis palestinos inocentes morreram na guerra, inclusive crianças. Provavelmente milhares. E é horrível, como é horrível a morte de crianças em qualquer guerra. É triste independentemente do número, porque uma única criança morta (mesmo que sua morte seja uma consequência indesejada da guerra) deveria ser suficiente para nos comover, como nos comovem as crianças que o Hamas (de forma mais do que desejada: a sangue frio) sequestrou, torturou e matou. Nada disso justifica inventar números ou falsificar notícias, muito menos dizer que Israel é culpado pelo maior número de crianças mortas no mundo, mas mesmo essas mentiras dos inescrupulosos e dos irresponsáveis não apagam a dor real: toda mãe que chora seu filho nos faz chorar com ela, seja árabe ou judia, nesta guerra ou em outras. Quem viu sua mãe chorando outro filho sabe do que estou falando.
De acordo com UNICEF, mais de 473 milhões de crianças – mais de uma em cada seis em todo o mundo – vivem em áreas afetadas por conflitos.
Pela guerra no Sudão, desde 2023, mais de 522 mil crianças morreram de fome e o país enfrenta a pior crise humanitária do mundo: dezenas de milhares de mortos, mas de três milhões de refugiados e oito milhões deslocados. Na Síria, até a queda do ditador Assad, a guerra civil tinha matado mais de 500 mil pessoas – entre elas, mulheres e crianças – e levado mais de cinco milhões para o exílio, além de outros 7 milhões de deslocados internos. No Iêmen, além das milhares de crianças mortas pela guerra, a ONU estima que há mais de 500 mil gravemente desnutridas. E o que dizer da Ucrânia, com quase sete milhões de refugiados espalhados pelo mundo e mais de 40 mil civis mortos desde a invasão russa, entre eles, centenas de crianças?
O último tuíte da Sâmia sobre a Ucrânia foi em 2022. Sobre a Síria, em 2018. Sobre o Iêmen e o Sudão, nunca. Todas as guerras são horríveis. Espantosas. Matam milhares de inocentes, provocam fome, exílio, deslocamento. Deixam cidades inteiras devastadas, gente sem casa, crianças órfãs, pernas amputadas. A devastação total em muitas regiões da Faixa de Gaza é estarrecedora, assim em Alepo, Darfur, Kiev e outras cidades que, filmadas por drones, parecem a mesma, embora a guerra seja outra. Assim como aconteceu em tantas guerras anteriores, que não mobilizaram tantos políticos, ativistas e internautas pelo mundo porque «No jews, no news»².
O melhor que pode acontecer numa guerra é ela acabar ou, melhor, nunca começar.
Mas então, por que a deputada Sâmia não disse nada quando o Hamas assassinou mais de 1200 civis israelenses a sangue frio, casa por casa, a tiros e facadas? Não foram vítimas colaterais: foi uma carnificina feita à mão, que eles comemoravam dançando e gritando «Allahu Akbar». Não havia, naquele dia, um único soldado israelense na Faixa de Gaza (nem um único judeu, desde 2005!), e foi assim que esta guerra começou. Por que ela não disse nada quando entraram atirando na Festa Nova e mataram centenas de jovens como num videogame? Cadê a deputada quando o menino Ariel Bibas, de 4 anos, e seu irmão Kfir, um bebê de oito meses, foram sequestrados pelos terroristas junto a outras centenas de civis? Eles mataram dezenas de crianças e sequestraram outras dezenas – ou não eram crianças também? O que eram? E quando os corpos sem vida dos Bibas foram entregues em caixões, brutalmente assassinados, a deputada não soube?³
A palavra ‘Hamas’ não aparece nos tuítes da Sâmia, nem a palavra ‘reféns’, como se a guerra tivesse um lado só, eternamente culpado, e seu primeiro tuíte sobre o assunto desde o ataque terrorista de 7 de outubro foi uma fake news acusando Israel de ter bombardeado um hospital e matado 500 pessoas. Nunca aconteceu (não foi um bombardeio, não foi Israel, não era um hospital, e não morreram 500 pessoas), mas é repetido até hoje.
Desde que a guerra começou, vários parlamentares do PSOL e outros partidos de esquerda publicaram inúmeras mentiras, além de acusar falsamente o Estado judeu de genocídio, colonialismo e apartheid[4]. Promoveram campanhas antissemitas, como a que pede o rompimento de relações acadêmicas entre universidades brasileiras e israelenses, repetiram a frase “do rio ao mar” (esta sim, uma incitação ao genocídio ou à limpeza étnica) como grito de guerra e a palavra “sionista” como xingamento. A Sâmia até tirou foto ao lado de ativistas ligados ao Hamas e, ao mesmo tempo, nunca aceitou conversar com a comunidade judaica. Outras lideranças importantes do mesmo partido não concordam com nada isso, mas não falam nada. Ficam com medo de ser cancelados pela própria militância e pedem tempo (“quando a guerra acabar”) para levar a sério o problema do extremismo, o preconceito e o ódio em suas fileiras.
Em 2019, eu renunciei à executiva estadual do PSOL-RJ, no meu terceiro mandato, cansado de enfrentar tudo isso. Era insuportável. E não havia guerra, mas até o Shimon Peres eles chamavam de “genocida”. Os militantes judeus do partido, a maioria jovens, eram assediados pela corrente da Sâmia em seus perfis, no Facebook, com a frase «Fora, sionistas!» (o sionismo nada mais é do que o movimento de autodeterminação nacional do povo judeu).
Há décadas que mentiras e teorias conspiratórias são usadas, na bolha progressista, para provar que o Estado judeu é o pior vilão do mundo e os sionistas (ou seja, 95% dos judeus do mundo), gente ruim, como na caricatura dos Protocolos[5]. Se tudo o que eles dizem que Israel e “os sionistas” fazem fosse verdade, como não sentir repulsa e até ódio por eles? Como não ficar com raiva? E aí vem um maluco, dias atrás, e mata a tiros um casal que saía de um evento no museu judaico de Washington, e todos nos perguntamos: “Como foi que isso aconteceu?”.
Poucos dias antes da postagem da deputada Sâmia, a BBC divulgou a falsa notícia de que 14 mil bebês de Gaza poderiam morrer por desnutrição nas seguintes 48 horas, o que só foi desmentido – pela própria emissora britânica – quando o mundo inteiro já tinha acreditado. Não havia notícia alguma, mas apenas uma interpretação desonesta de um estudo que apresentava uma hipótese sobre a mortalidade infantil ao longo do próximo ano (e não das próximas 48 horas), condicionada a uma série de fatos improváveis. Por exemplo, que não ingressasse nenhum tipo de ajuda humanitária à Faixa de Gaza ao longo de um ano inteiro! Na última semana, ingressaram 388 caminhões com alimentos, remédios e equipamentos médicos e, desde que a guerra começou, foram 1,7 milhão de toneladas de ajuda. As 48 horas já passaram há vários dias e nada aconteceu, mas até o presidente do Chile, Gabriel Boric, compartilhou a fake news.
Na mesma semana, um deputado da esquerda britânica, Clive Lewis, publicou a foto estarrecedora de uma suposta criança palestina com a cara queimada por um bombardeio israelense, mas era uma criança da Turquia que padece uma doença grave na pele. E houve outras, muitas outras mentiras (muitas delas, sobre crianças); dezenas cada mês, cada semana.
A realidade, sem aditivos, já é triste e dolorosa demais. A situação humanitária na Faixa de Gaza é grave. A guerra precisa acabar, mas isso não depende apenas de Israel, e passar pano para o Hamas não está ajudando a chegar a lugar nenhum[6]. Mentir, exagerar e demonizar os judeus também não ajuda os palestinos. E nem ajuda a entender um conflito tão longo e tão complexo, sobre o qual a maioria sabe tão pouco.
Na verdade, postagens como a da deputada Sâmia só ajudam a ganhar likes.
E, claro, é o que a militância mais fanática quer e aplaude. Falam para a própria base, mas contaminam o debate público e conspiram contra a sensatez.
E, enquanto tantos políticos extremistas fazem isso – incitam ao ódio, espalham fake news, ou assinam notas chamando os terroristas de “heróis corajosos” e os reféns de “prisioneiros” – para ganhar likes e agradar a base, há imagens da Faixa de Gaza que eles não veem.
Ao longo dos últimos meses, dia após dia, dezenas de milhares de palestinos saíram às ruas, de Beit Lahia a Jabalia, de Gaza a Deir al Balah, de Khan Yunis a Rafa, gritando: “Fora, Hamas, fora!”, “Libertem os reféns!”, “Queremos viver!”. E, do outro lado da fronteira, milhares de israelenses protestam contra Netanyahu e seu governo.
Ambas as sociedades estão cheias de nuances e contradições e seus líderes representam apenas uma parcela delas – com uma diferença, que não pode ser omitida: o governo israelense pode mudar na próxima eleição, em Gaza não há eleições[7]. A esquerda brasileira, por incrível que pareça, não entende que o governo do Hamas é uma ditadura. Mas há outras vozes, que a gritaria não nos deixa ouvir, deputada Sâmia. Também há outros caminhos para a paz.
A realidade é mais complexa que as palavras de ordem dos fanáticos e dos oportunistas.
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Bimbi é jornalista, escritor, ativista LGBT, doutor em Estudos da Linguagem (PUC-Rio) e autor dos livros “Casamento igualitário” e “O fim do armário”. Foi membro da Executiva Estadual do PSOL-RJ. É gerente Sr. de Estratégia Política da StandWithUs Brasil.
Notas:
¹ Até o momento, estima-se que aproximadamente 846 soldados israelenses tenham morrido desde o início da guerra entre Israel e Hamas, em 7 de outubro de 2023. Esse número inclui militares mortos durante a invasão terrestre da Faixa de Gaza, bem como em outros confrontos relacionados ao conflito. É importante notar que aproximadamente 17% das mortes de soldados israelenses ocorreram devido a fogo amigo ou acidentes operacionais, como explosões não intencionais e incidentes com veículos blindados. Do lado palestino, mais de 48.200 pessoas foram mortas, incluindo uma grande proporção de mulheres e crianças, e mais de 111.600 ficaram feridas.
²É uma lógica que faz parte da retórica sionista: se você nada falou sobre as demais guerras, não pode falar sobre Gaza. É apenas um recurso retórico. Não consideram que a guerra de Gaza é a primeira com ampla divulgação nas redes sociais. E Israel era considerada, até então, a única democracia Ocidental no Oriente Médio.
³Todo ato terrorista deve ser condenado, especialmente contra civis.
4 Os palestinos são cidadãos de segunda classe em Israel. Nunca deram condições de autossuficiência aos moradores de Gaza. Colonos israelenses invadem e expulsam palestinos de suas casas. Que nome se dá a essa prática reiterada?
5 Essa generalização é do mesmo quilate daqueles que acreditam nos Protocolos dos Sábios de Sião.
6 A lógica de que “não depende apenas de Israel” significa passar pano em Netanyahu, da mesma maneira que a esquerda passa no Hamas. Saliente-se que, de acordo com uma pesquisa do Pew Research Center realizada entre fevereiro e março de 2025, 33% dos israelenses acreditam que Israel deveria governar Gaza após o fim da guerra. Esse número representa uma queda em relação aos 40% registrados em 2024.
7 Tem razão.
Faltou apenas uma explicação. Qual a razão da Conib e das Federações Israelitas jamais terem dado uma palavra sequer de condenaçào ao massacre de Gaza, ao senso de desproporção entre as vítimas do terrorismo do Hamas e as vítimas de um Estado armado, em Gaza. E o fato de se invocar o antissemitismo contra qualquer declaração condenando o massacre.
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