Brasil: República de Sobreviventes
por André Augusto Araújo Oliveira
Se a democracia brasileira realmente existisse para todos, por que então a fome, a exclusão e a morte ainda têm cor, endereço e classe social?
O Brasil assina a democracia com caneta dourada, mas o povo tem fome na barriga. A palavra “democracia” soa bela nas tribunas e palanques, mas ecoa como deboche no prato vazio da maioria. Enquanto candidatos se empanturram de povo nos discursos, o povo mastiga silêncio, boca seca de fome e de futuro. A democracia brasileira, celebrada como símbolo de civilidade, revela-se, na prática, uma arquitetura da exclusão.
No papel, a cidadania é universal. Na vida real, ela tem endereço, cor e classe. Vivemos sob um simulacro democrático: direitos básicos — saúde, moradia, educação — viraram favor. O Estado aparece com atraso, quando aparece. A tragédia da fome, da ausência e do descaso se converteu em hábito. O povo assiste a essa novela trágica: personagens viciados, roteiros previsíveis e o mesmo final, sempre cruel.
Ninguém sobrevive com dignidade à sombra da fome. E é nessa sombra que milhões tentam existir. A fome no Brasil não é só a falta de alimento: é a presença concreta de um projeto político de extermínio. “O colonizado é um ser condenado”, como nos lembra o filósofo político Franz Fanon. Essa condenação recai, historicamente, sobre corpos negros, periféricos, femininos, indígenas e dissidentes.
A necropolítica se institucionalizou. Não há democracia onde a barriga ronca mais alto que o Hino Nacional. O povo vota, mas não janta. E quando janta, é farinha com esperança. A fome tem cor, CPF, CEP — e, quase sempre, pele escura. Esse sistema não falha: ele opera exatamente para isso. Aqui, matar não é exceção, é método.
Contar a própria história, então, vira ato de resistência. São as vozes marginalizadas que denunciam a democracia como promessa rompida. A fome que assola não é obra do acaso, mas resultado direto da destruição planejada das políticas públicas. Enquanto alguns acumulam, muitos sobrevivem. O pacto social brasileiro é seletivo: garante muito a poucos, e quase nada a muitos.
Educação sabotada, futuro roubado
A educação, motor de emancipação, vem sendo sabotada desde a infância. Enquanto o acesso à universidade é usado como vitrine, a escola pública sangra. A precarização não é fruto da escassez, mas do projeto. Conforme o geógrafo Milton Santos, “o território é espaço de poder e exclusão”. — e a escola é o território onde se disputa o direito de existir no amanhã.
A exclusão começa na merenda rala e termina no currículo embranquecido. A escola pública, que deveria libertar, muitas vezes reprime, para Bell Hooks “Ensinar é um ato de liberdade”. Mas qual liberdade floresce em salas superlotadas, com professores esgotados e crianças famintas? A educação brasileira é caricatura de igualdade: todos na escola, mas poucos aprendendo.
Ao apagar vozes negras, indígenas, periféricas dos currículos e das práticas pedagógicas, o sistema educacional perpetua o apagamento estrutural. A democracia se torna um jogo de espelhos: muitos veem, mas poucos são vistos. A escritora Ana Maria Gonçalves já denunciava isso em Um defeito de cor: a história oficial apaga, silencia e mata de novo quem já foi silenciado.
A escola virou depósito, não espaço de formação. Professores são desrespeitados, crianças são tratadas como números e o futuro é negado em nome da contenção de danos. A precariedade do ensino é um reflexo da necropolítica: mata-se o saber antes que ele floresça. Democracia sem educação digna é fraude.
Saúde como campo de batalha
A saúde pública brasileira é metáfora de sua falência democrática. O SUS, vendido como conquista universal, é, na prática, um campo de batalha. Nas periferias e zonas rurais, a realidade é feita de postos sem médicos, profissionais esgotados, falta de remédios e esperas que adoecem mais do que curam. A promessa da universalidade esbarra na seletividade da presença estatal.
Governar é cuidar de gente — mas, aqui, só se cuida de cliente. A dor sem atendimento virou linguagem nacional. Silenciaram as queixas com burocracia, e anestesiaram as urgências com discursos. A saúde virou mais um espelho quebrado da democracia: quem não pode pagar, adoece em fila. Quem grita demais, morre antes do diagnóstico.
O sistema nos treina a agradecer pelo mínimo. Para Fanon, filósofo político, “O colonizado é colocado numa posição tal que só pode agradecer a generosidade do colonizador”. Agradecemos pela consulta marcada para daqui a meses, pelo remédio que não chegou e pelo atendimento frio. Agradecer não é opção. Exigir deveria ser regra.
O colapso da saúde é mais uma face do projeto de morte. A dor do povo é tratada como ruído. Cada ausência de médico, cada hospital fechado, cada remédio em falta é parte da engrenagem que nos desumaniza. A democracia que não cuida do corpo adoece a alma da nação.
Moradia ou remoção?
No Brasil, morar é verbo de risco. A moradia, direito previsto na Constituição, virou privilégio de poucos. O direito à moradia foi capturado pelo mercado imobiliário, que transformou uma necessidade básica em mercadoria. Em nome da requalificação urbana, multiplicaram-se as remoções e os processos de gentrificação” segundo Bonduki. A política habitacional, historicamente, serviu para remover pobres, não para protegê-los.
O crescimento desordenado das periferias não é desorganização: é projeto. A cidade é desenhada com muros, não com pontes. O Estado não constrói lares, expulsa corpos e financia empreendimentos longe de tudo: sem escolas, sem postos, sem vida. A lógica é afastar quem não consome, quem não conta, quem não serve.
A cidade da exclusão é também a cidade do racismo institucional. Corpos negros são lançados à margem: simbólica, política e geográficamente. A cidade não é fragmentada por acaso, ela é segregada por intenção. A urbanização, aqui, é a arte de excluir com régua e compasso.
A geografia da desigualdade se desenha com concreto e dor. O Brasil que se diz democrático empurra seus cidadãos para a lama. Nos conjuntos distantes, nos barracos frágeis, nos becos sem saída, vivem os que nunca foram convidados à festa da democracia. A cidade, que deveria ser abrigo, vira armadilha.
Resistir não é destino, é denuncia
A democracia brasileira é seletiva. Seus direitos têm cor, CEP e sobrenome. As favelas não votam por esperança, votam por sobrevivência. A democracia não desce a ladeira, não cruza a enchente, não sobe a laje. Ela é madame benevolente: oferece migalhas e cobra gratidão.
Os corpos negros, indígenas, LGBTQIA+ e periféricos seguem como alicerces de uma democracia que nunca os contemplou. “A interseccionalidade é uma chave para compreender as múltiplas formas de opressão que se entrelaçam nas vidas das pessoas marginalizadas”, Segundo Bell Hooks. Mulheres negras, mães solo, jovens da quebrada — são os que mais sofrem. E, não por acaso, os que mais resistem.
Mas resistir não deveria ser obrigação. A dignidade não nasce do improviso, nasce de políticas públicas reais. E é isso que nos falta: políticas enraizadas, integradas, que tratem gente como gente. Saúde, educação e moradia não podem andar sozinhas. O Estado, hoje, opera em compartimentos, sem diálogo, sem afeto.
Não vivemos uma crise — vivemos um projeto. Um projeto que decide quem pode viver com dignidade e quem deve sobreviver ao avesso dela. A guerra civil que enfrentamos é silenciosa: está no posto sem médico, na escola sem merenda, na casa que desaba. O cotidiano da maioria virou campo de extermínio disfarçado de normalidade.
O Brasil não é uma democracia — é uma república de sobreviventes. E isso precisa ser dito, denunciado e enfrentado. A fome é política. A ausência é escolha. A violência é método. A democracia, neste país, continua sendo privilégio de poucos e promessa vazia para muitos.
André Augusto Araújo Oliveira é Assistente Social, Mestre em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Social pela UCSAL e Doutorando em Arquitetura e Urbanismo pelo IAUUSP. Integra a Rede Negra de Planejamento Urbano e Regional e o Núcleo Salvador da Rede BrCidades.
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