Dois corpos, um nome

por Eliseu Raphael Venturi

Quando se noticia, com escândalo, a existência de “padres gays”, o que está em jogo não é apenas uma transgressão disciplinar da doutrina eclesial, mas uma disputa mais funda sobre os contornos do que se entende por “ser gay” na ordem simbólica contemporânea.

A pergunta, então, se desdobra: o gay de batina é o mesmo que o gay de bermuda na praia? Que identidade se nomeia, e que identidade se nega, ao se dizer que um padre é gay?

A expressão “padre gay” atua, nesse registro, como um curto-circuito discursivo. Ao invés de nomear com clareza um sujeito — um homem, homossexual, ordenado, religioso —, ela promove um estranhamento. Como se houvesse algo de contraditório, de impossível ou até de perverso nesse enunciado. Mas a pergunta que deveria nos inquietar é: por que ainda hoje a ideia de um homem homossexual e um religioso católico serem o mesmo corpo soa como uma anomalia, principalmente fora da moral religiosa? Seria esse desconforto um sintoma?

É possível afirmar que o universo simbólico do “gay laico” e do “padre gay” não coincidem. O primeiro, inscrito numa ética cívica (ainda que precária), pode construir uma sexualidade afirmada, pública, politizada — ainda que com desafios, violências e apagamentos, e ainda que pagando os altos preços discriminatórios evidentes disso. O segundo, entretanto, vive sua sexualidade como dilema teológico, como pecado, como desvio a ser negado ou, mais frequentemente, ocultado, ou até mesmo como prática predatória. É uma identidade que não pode ser, a não ser sob o signo do segredo. A própria linguagem da Igreja não nomeia o desejo homossexual — ela o nega ou o patologiza, e exigir isso desta normatividade também seria incitar um novo curto-circuito discursivo.

O problema está em como essas duas posições imagináveis de sujeito — o gay civil e o gay religioso — se tornam mutuamente indecifráveis. E o sentido político reside justamente nisso: quando o gay civil recebe a mesma reprovação (moral) do gay religioso que se toma por perverso — uma que vez não raro o gay civil é visto como um perdido a que se deve resgatar (odeie o pecado, não o pecador).

O que pode ser, ainda que precariamente, liberdade e afirmação para um, é culpa e abjeção para o outro, embora no final das contas, não obstante muito amados, ambos precisem ser gentilmente resgatados ou pura e simplesmente aniquilados. E, no entanto, ambos são, socialmente, enquadrados sob o mesmo rótulo: “gay”. Mas a subjetividade que se articula a partir dessa palavra é radicalmente distinta em cada caso. O termo, portanto, é disputado: ele tanto pode ser uma categoria política de respeito e reconhecimento quanto um significante de escândalo moral — sobretudo quando articulado à figura do sacerdote.

Neste ponto, emerge a analogia com outra expressão sem consistência conceitual fora do campo religioso: “ideologia de gênero”. Essa expressão, fabricada politicamente, cria o efeito retórico de uma ameaça às “verdades naturais” do corpo e da moral. O “padre gay”, por sua vez, realiza o mesmo efeito paradoxal: ele é um corpo que ameaça o próprio sistema que o constituiu. Não por praticar uma sexualidade dissidente, mas por ser, em si, a impossibilidade da separação entre fé e desejo.

O incômodo causado por essa figura revela o quanto, mesmo em sociedades formalmente laicas, a sexualidade continua sendo convocada a prestar contas às doutrinas religiosas. Gays civis — que poderiam, em tese, afirmar-se como sujeitos autônomos — ainda se veem julgados pelos termos da moral religiosa. E, por vezes, ainda aderem a esse julgamento. A homofobia internalizada, os padrões de validação heteronormativa e a demanda por respeitabilidade denunciam que a esfera civil ainda não se libertou, de fato, do peso do altar.

Mais do que denunciar a existência de padres homossexuais — o que seria redundante —, o que se deve questionar é por que a figura do “padre gay” ainda se torna um problema público. Afinal, a castidade (hetero ou homo) é exigência clerical, não identidade sexual. O celibato não pressupõe heterossexualidade. E ainda assim, a existência de padres homossexuais é tratada como escândalo, como desvio, como risco. Risco de quê? De que a Igreja precise lidar com a própria homossexualidade estrutural e não mais com a sua negação?

É necessário, portanto, repensar o modo como se constroem as categorias identitárias em disputas simbólicas. O “gay laico” que rejeita o “padre gay” talvez tema que sua própria identidade, duramente conquistada, seja arrastada de volta à sombra do pecado. Mas talvez esse “padre gay” seja, também, a imagem invertida de uma sociedade que não soube, ainda, executar a lição de como separar o desejo da culpa.

Eliseu Raphael Venturi é doutor em direito.

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Last Update: 03/06/2025