Por Mirko Casale*
A presença do sionismo na América Latina é quase tão antiga quanto o próprio sionismo. Sua influência em diferentes áreas da sociedade, política e economia da região é fundamental para os interesses do chamado Estado de Israel.
No entanto, tal como nos Estados Unidos, o apoio a Tel Aviv não vem exclusivamente da população judaica latino-americana, mas sim de setores afiliados a outras religiões e culturas.
Da mesma forma, sem ser maioria, também não são raros os judeus da região que abraçam a causa palestina. E abordaremos todos esses tópicos com dois convidados de autêntico luxo: Tali Feld Gleiser (jornalista, diretora do Portal Desacato.info) e George Isaac Siman (analista da situação palestino-israelense).
Aí vai!
Mirko Casale: Embora os judeus tenham começado a se estabelecer na América já no século XVI, esta imigração tornou-se significativa trezentos anos depois, após a imposição de pogroms e políticas discriminatórias na Europa.
Os migrantes chegaram principalmente à Argentina, Brasil e Uruguai. E vários deles levaram consigo as idéias de Theodor Herzl, fundador do sionismo, sobre um lar nacional judaico.
O século XX foi ainda mais decisivo com a aceleração das migrações, após a ascensão do nazismo ao poder em 1933, e a admissão de Israel na ONU após a Segunda Guerra Mundial.
Desde então, a população latino-americana de origem judaica começou a tecer uma relação peculiar com a entidade recém-criada.
Alguns eram indiferentes, outros hostis, e os restantes, sionistas convictos. Com um impacto lógico em múltiplos aspectos da região, que se estendem até o presente.
Tali Feld Gleiser: O sionismo está presente na política, na mídia, na economia. É enorme, por exemplo, nas áreas da agricultura, energia, defesa, entre muitas aspas, no treinamento de forças repressivas, startups, desenvolvimento de software, vendas de equipamentos militares e tecnologia de repressão.
George Isaac Siman: Eles trabalham em praticamente todos os ramos dos poderes, tanto governamentais como da sociedade civil. Antes, na América Latina, o sionismo atuava mais a partir do militarismo, apoiando ditaduras, apoiando governos paramilitares de direita, cartéis mafiosos, o que eles continuam fazendo.
Mas, hoje, com mais inteligência e com tentáculos estendidos aos poderes políticos. São poucas as nações latino-americanas que não sentem de uma forma ou de outra o peso dos interesses pró-Israel em sua realidade política, social e econômica.
Mesmo nos países que romperam relações diplomáticas com Tel Aviv, esses grupos não deixam de ter influência, através de uma rede complexa com a mesma origem.
As pessoas pensam que o Mossad é apenas um braço militar. Não. O Mossad é militar, diplomático, acadêmico e empresarial. Então, temos que a primeira coisa que o sionismo se assegurou foi o de colher lealdades em poderes políticos.
É assim como eles financiam os lobbies dentro dos próprios órgãos legislativos. O caso da Argentina é claro, onde ela é a ponta de lança do sionismo na América Latina.
Estamos vendo isto com o caso do marioneteiro e simpático Milei, e em outros países que têm essa tendência de direita. Mas eles também foram hábeis em visualizar que a esquerda ou centro-esquerda ganhou espaço na América Latina, dado o fracasso destes governos de direita, e garantiram suas figuras dentro desse espectro político para cobrir toda a gama de cores do possível voto popular na América Latina.
Mirko Casale: No entanto, a forma mais eficiente pela qual o sionismo penetrou na política latino-americana não foi através dos praticantes do judaísmo, uma comunidade que é influente em muitos aspectos, mas demograficamente irrelevante.
A arma secreta de Tel Aviv para tratar de sionizar ao máximo a América Latina tem sido aproveitar o papel de certos ramos do cristianismo evangélico.
Tali Feld Gleiser: O avanço continental das igrejas neo-evangélicas é um fenômeno que vem se consolidando desde 1969, quando David Rockefeller fez a primeira crítica aberta à teologia da libertação.
E, em seu relatório, observou que a Igreja Católica não era mais um aliado confiável para os Estados Unidos, nem garantia estabilidade social no continente. Senão que havia se tornado um perigoso foco de potencial revolução.
E na década de 1980, Ronald Reagan retomou essa linha. E com o objetivo de financiar a expansão das igrejas evangélicas na América Latina, fundou o Instituto de Democracia e Religião. Este apoio financeiro permitiu que a integração destas igrejas se desenvolvesse de uma forma, entre aspas, natural.
George Isaac Siman: O sionismo na América Latina pretende emular o que já está consolidado nos Estados Unidos, que é essa grande massa evangélica cristã.
Vamos recordar que aproximadamente cem a cento e dez milhões de americanos são fervorosos seguidores da fé protestante, também conhecida como cristianismo evangélico, messiânico, etc. E eles são basicamente uma grande parcela daqueles que elegem o presidente nos Estados Unidos, que, no final, é quem assina as ordens de ajuda a Israel.
Aí está o elo, a cadeia alimentar da razão pela qual é tão importante para o sionismo enganar e tratar os cristãos evangélicos como idiotas úteis.
Mirko Casale: Assim, tal como nos Estados Unidos, o principal apoio de Tel Aviv na América Latina não é constituído pelo chamado lobby judeu pró-Israel, e sim o ainda mais influente lobby evangélico pró-Israel.
E, embora o apoio à entidade israelense seja majoritário entre a comunidade judaica latino-americana, é cada vez menos raro encontrar judeus que, apesar das consequências familiares e comunitárias que possam sofrer, defendem a Palestina e protestam ativamente contra o autoproclamado Estado Judeu, que tem muito menos de judaico do que de polonês, ucraniano ou alemão, como abordamos em um vídeo dedicado ao tema, aliás.
Tali Feld Gleiser: Já há alguns anos, especialmente, existe um antissionismo, mas eu diria que, antes de ser antissionista, o que eles são, é um movimento em defesa dos direitos humanos do povo palestino, seu direito de retorno, seu direito à autodeterminação.
Então, dentro disso, o antissionismo está enquadrado. Mas acima de tudo, é um movimento pró-palestino.
Por exemplo, a campanha de Boicote, Desinvestimento e Sanções, BDS, sobre o qual você fez programas. É isso que, nos últimos anos, desde que a sociedade civil palestina pediu essa campanha, que isso existe na América Latina. Com algumas vitórias, algumas derrotas, por vezes desarticuladas, com articulação, em outros.
Mirko Casale: O início do genocídio israelense em Gaza no final de 2023, tal como no resto do planeta, também representou um choque para a região da América Latina e do Caribe em vários níveis: Político, com vários governos rompendo relações diplomáticas com a entidade israelense, como o colombiano, o nicaraguense e o boliviano, que se somaram às rupturas de longa data, como as de Cuba e Venezuela.
O impacto social também foi imenso, com uma espécie de despertar do ativismo pró-palestino e antissionista em toda a região. Desfazendo, em grande parte, os esforços de décadas de Tel Aviv para construir uma imagem positiva na América Latina. No entanto, seu impacto definitivo a médio ou longo prazo ainda não foi visto.
Tali Feld Gleiser: Acredito que o sionismo na América Latina não vai ter todo o enraizamento que tem hoje. O futuro imediato parece muito complicado no sentido de que estamos vendo todo esse derramamento de sangue.
O sionismo se supera com sua crueldade. Chega um momento em que não há mais palavras para descrevê-lo. É difícil porque eles têm o controle da mídia, domínio da política também, como dissemos no início.
Mas ele necessariamente tem que cair por seu próprio peso. Nenhum regime sangrento como esse pode se sustentar.
George Isaac Siman: A América Latina está acordando. Meu medo é acordar muito tarde. Porque é absolutamente claro para aqueles de nós que estudamos a história do colonialismo que o objetivo imediato do colonialismo, seja o imperialismo gringo ou o sionismo como o conhecemos no Médio Oriente, o alvo é a América Latina.
Tali Feld Gleiser: A resistência do povo palestino é a primeira coisa nos ensina uma forma de existir. Temos os mesmos problemas em comum, muito parecidos, na América Latina com a Palestina.
George Isaac Siman: Como sempre lhes digo: é preciso nos vermos refletidos no que está acontecendo na Palestina. Assim, a América Latina terá a chance de evitar que essa história dolorosa se repita em nossos povos.
Mirko Casale: A chegada de judeus, em sua maioria europeus, à América Latina nunca foi um problema para uma região acostumada a receber imigrantes de todo o planeta de braços abertos.
Contudo, o sionismo usou e continua usando boa parte deles, e de outros setores fora da religião e cultura judaica para proteger os interesses desse porta-aviões estadunidense enfiado à força na Ásia Ocidental, que se autodenomina Israel. E tem feito isso com bastante sucesso.
Mas a recente involução israelense, que passou abruptamente do regime do apartheid com uma certa habilidade para relações públicas a um regime genocida sem qualquer pudor ou dissimulação, poderia finalmente colocar em dificuldades a impune interferência política, midiática e econômica do sionismo na América Latina.
Afinal, uma região que conheceu e conhece em carne própria o colonialismo, o imperialismo e os abusos associados a ambos, não deveria ter muitos problemas para reconhecê-los, seja onde for que queiram se impor.
*Mirko Casale é o roteirista, apresentador e diretor do programa Ahí les va! (Aí, está!), que há cinco anos a RT transmite para países de língua espanhola.
*Jair de Souza: Transcrição e tradução ao português e legendas.
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