
Nos Estados Unidos, uma das prioridades do governo Trump é impedir que nas universidades ocorram manifestações contra o genocídio do povo palestino. Na Alemanha, um juiz decidiu que perguntar “não aprendemos nada com o Holocausto?”, no contexto da denúncia à carnificina em curso em Gaza, é crime. No Brasil, o senador Mourão, de longa ficha corrida na oposição à democracia e aos direitos humanos, está propondo uma lei para criminalizar as críticas ao Estado de Israel.
O que está ocorrendo na Palestina é de conhecimento de todos. Mesmo a propaganda sionista tem dificuldades em fingir que acredita em si mesma. Basta olhar os artiguinhos que a seção brasileira do Stand With Us – organização voltada à disseminação da desinformação em favor de Israel – solta de vez em quando na imprensa. Parece que tentam apenas cumprir tabela, tamanha a falta de verossimilhança dos argumentos.
Nos últimos tempos, eles têm insistido na tese de que “o povo palestino não existe”. Se não existe povo, não pode existir genocídio – uma questão de lógica, simples.
Mas então quem são as pessoas que eles estão matando às dezenas de milhares, desde outubro de 2023? Quem são aquelas crianças mutiladas e famintas? De quem são as casas, os comércios, as escolas, os hospitais que eles estão destruindo de forma deliberada e sistemática desde o início da nova fase desta guerra de extermínio? Para quem é a ajuda humanitária que eles impedem de entrar em Gaza – sendo necessário, bombardeando navios com alimentos e remédios, com fizeram agora na costa de Malta?
De quem eles roubaram a terra, a partir do final da Segunda Guerra Mundial?
Sobre os corpos de quem foi erigido o Estado de Israel?
Sua fundação, em 1948, passou pela expulsão de 750 mil palestinos de suas terras – nas palavras do historiador Ilan Pappé, um israelense crítico de seu país, um processo de “limpeza étnica”, para retirar os indesejados de seus territórios.
Desde então, a história é de anexação de territórios e muita violência. Desde antes da ofensiva atual, Faixa de Gaza já era um grande campo de concentração – Israel mantinha um severo bloqueio contra o território, impedindo o trânsito de pessoas e de produtos. Faltavam suprimentos, faltava energia elétrica, faltava água. Ataques “preventivos” ou “retaliativos” contra civis sempre foram frequentes.
A ofensiva atual, que já ultrapassa um ano e meio, só agravou a situação. Houve a “trégua”, no começo deste ano, que Israel nunca respeitou integralmente, e logo a barbárie foi retomada.
E o mundo parece esquecer do que está acontecendo na Palestina.
Todos os dias, uma repetição das mesmas cenas pungentes: escolas bombardeadas, crianças mortas e mutiladas, pessoas passando fome, soldados israelenses gravando vídeos de dancinha diante de prisioneiros torturados ou de destroços. Nada de novo. Logo, talvez, nenhuma notícia.
Esse “nada de novo” é, na verdade, o cotidiano do horror. A contagem de crianças mortas sobe aos milhares. Mas cada criança morta é uma nova criança, é uma nova vida interrompida, são sonhos de uma nova pessoa ceifados antes que pudessem sequer se estabelecer, são novas famílias enlutadas.

A continuidade do horror não deveria diminui-lo. Pelo contrário, torna-o ainda mais desesperador. Enquanto o genocídio continuar na Palestina, temos o dever de não desviar os olhos.
Para Israel, o melhor que pode acontecer é este esquecimento. É a normalização do genocídio.
Por isso, tanto esforço para calar as vozes que ainda se erguem.
Seja o jornal Haaretz (publicado desde 1918, ainda na Palestina sob mandato britânico, é o jornal mais antigo de Israel, o terceiro em termos de circulação e, de acordo com todos os observadores, o de maior prestígio), que Netanyahu quer fechar por causa de sua corajosa cobertura dos crimes cometidos pelas tropas israelenses; sejam estudantes e professores, em Columbia, em Harvard, na USP, na PUC-SP; sejam ativistas e escritores – censurá-los é o objetivo.
Usa-se a palavra mágica – “antissemitismo” – completamente deslocada de seu verdadeiro sentido. Acusar os críticos de antissemitismo é uma maneira de calá-los e de confundir a opinião pública.
Na Folha de hoje, um porta-voz do Stand With Us defende as perseguições do governo Trump contra estudantes com base nesta falsa equivalência, apimentada com algumas mentiras, como se os manifestantes contra o genocídio agredissem seus colegas judeus. Pelo contrário, judeus humanistas, de movimentos como o Jewish Voice for Peace, estão na linha de frente da oposição às políticas assassinas de Israel.
A diferença entre antissemitismo e antissionismo é cristalina.
Antissemitismo é o ódio dirigido aos judeus por serem judeus. É uma forma de racismo.

Antissionismo é a oposição ao empreendimento colonial de Israel na Palestina, que causou e continua causando sofrimento, privação de direitos, miséria e morte a todo um povo. É uma forma de humanismo.
São obviamente duas coisas muito diferentes – tanto é que muitos judeus são antissionistas militantes.
Israel e os sionistas que fazem sua defesa pelo mundo afora odeiam a liberdade de expressão porque querem impor o discurso único – e falso – que faz dos colonizadores da Palestina vítimas eternas, escondendo os crimes que cometem contra o povo que espoliaram.
Informação jornalística confiável, análises bem embasadas e contextualização histórica são inimigas do sionismo.
O antissemitismo foi um elemento central da propaganda nazista. Dirigir a um grupo marginalizado, naquele caso os judeus, a culpa pelos males de uma ordem social injusta e opressora era, e ainda é, o caminho preferido para desviar a atenção das causas reais e manter tudo como está.
Mas o nazismo foi além da negação de direitos e da violência “banal” contra seus bodes expiatórios. Construiu uma espantosa máquina de extermínio.
Como explicou Enzo Traverso em um livro importante, La violence nazie, o que Hitler fez foi implantar no continente europeu as técnicas de morticínio que os próprios europeus operavam contra outros povos em sua expansão imperialista.
Quando o mundo foi finalmente obrigado a encarar a realidade do Holocausto, sentiu a consciência pesar – por séculos de perseguição aos judeus e pelo desinteresse em ajudar aqueles que fugiam da Alemanha.
Israel é fruto deste momento.
A perseguição nazista deu força a uma tese até então muito minoritária na diáspora judaica, o sionismo. Patrocinada por uns poucos líderes judeus e por governantes antissemitas que queriam “limpar” seus países, ela pareceu fazer sentido depois de todo aquele horror.
(Em 1917, Arthur Balfour, ministro das relações exteriores britânico, conhecido por suas posições racistas, inclusive antissemitistas, lançou uma declaração prometendo um “lar para o povo judeu” no protetorado britânico da Palestina, que se tornou a tábua sagrada do sionismo – assentado, como se vê, na autoridade do colonialismo europeu.)
Ao final da Segunda Guerra, as potências vitoriosas julgavam que promoviam uma reparação ao povo judeu apoiando a criação de um Estado nacional próprio em algum ponto do planeta.
Calhou ser na Palestina – que, surpresa!, era habitada por outros povos há milhares de anos. A decisão da recém-criada Organização das Nações Unidas, para a edificação do “lar judaico”, ignorou a existência desses habitantes, que não foram ouvidos em nenhum momento do processo.
Era recusado um princípio basilar da carta das próprias Nações Unidas: a autodeterminação dos povos.
A “partilha da Palestina” destinava aos judeus, que consistiam um terço da população, mais da metade do território, incluindo as terras mais férteis. O território palestino era árido e descontínuo.
É claro que os habitantes da Palestina não concordariam com isso – e a criação de Israel tomou, assim, a forma de uma empreitada colonial. Tratava-se de tomar terras a força, expulsando ou matando seus moradores.
Antes mesmo do fim do protetorado britânico, milícias terroristas, sob a liderança de David Ben-Gurion, começaram a expulsar palestinos de suas terras. Quando, em 14 de maio de 1948, a independência de Israel foi proclamada e eclodiu a primeira guerra árabe-israelense, acelerou-se o processo de limpeza étnica que gerou 750 mil refugiados e apagou do mapa cerca de 500 cidades e vilarejos palestinos.
Desde então, a situação só piorou. Tornado um bastião do imperialismo estadunidense na região, Israel adotou uma política de expansionismo agressivo.
O Holocausto foi transformado em blindagem para as críticas. Enquanto suas vítimas ou os filhos e netos delas se sentem horrorizados com a instrumentalização política de uma tragédia humana de tamanha proporção, os senhores de Israel mostram desenvoltura e fazem do sofrimento sob o nazismo aquilo que desculparia todas as atrocidades que cometem hoje contra outros povos.
Se antes o colonialismo europeu foi o precursor dos crimes do nazismo, práticas nazistas hoje encontram prolongamento na atuação dos sionistas.
A operação do Hamas em 7 de outubro de 2023 foi vista por Israel como uma grande oportunidade para aprofundar o genocídio.

Sim, a operação causou consternação geral. O sequestro de civis é sempre chocante – mesmo sem as mentiras logo inventadas pela máquina de propaganda israelense, como a “decapitação de bebês”, que hoje só os mais néscios repetem.
Israel viu ali a chance de retaliar sem qualquer limite.
Mas cabe lembrar que a causa primária é a violência do opressor – isto é, de Israel. Os palestinos lutam desesperadamente para romper a pasmaceira da comunidade internacional e chamar a atenção sobre sua situação. Lutam desesperadamente para livrar seus compatriotas das prisões israelenses, onde são torturados de forma bárbara. Para manter suas crianças a salvo do sadismo das forças sionistas.
Quando a indignação é seletiva, como na imprensa que recrimina o terrorismo do Hamas mas não é capaz de definir o Estado de Israel com os adjetivos certos (terrorista, racista, genocida), parece que aos palestinos não cabe outra alternativa que aceitar passivamente tudo o que sofrem.
Na primeira metade do século passado, a condenação ao nazismo e a solidariedade com suas vítimas formavam um imperativo moral absoluto, com o qual não era possível tergiversar.
Hoje, o repúdio ao expansionismo de Israel e a defesa da liberdade, da dignidade e da autonomia da Palestina traçam uma linha divisória que separa quem de fato defende os direitos humanos de quem transaciona com eles.
O sionismo é hoje, claramente, uma forma de fascismo. Está de braço dado com toda a extrema-direita, mesmo com antissemistas reconhecidos. No Brasil, está com Bolsonaro, Mourão, Damares, Zambelli. Os autoproclamados “sionistas de esquerda” ou são inocentes úteis ou formam uma quinta-coluna.
O sionismo merece um combate sem tréguas. Não é apenas pelo povo palestino, embora a solidariedade a ele já fosse suficiente. É por todos nós, por nossa humanidade comum.