Por Fernanda Alcântara
Da Página do MST
Neste sábado (1), Lélia Gonzalez completaria 90 anos. Nascida em 1º de fevereiro de 1935, em Belo Horizonte-MG, ela se tornou uma das principais vozes na luta contra o racismo e o sexismo no Brasil. Gonzalez foi uma intelectual engajada, cujo trabalho combinou reflexões teóricas com a prática política, questionando ideologias nacionais como a democracia racial e a miscigenação.
Filha de uma empregada doméstica e de um ferroviário, enfrentou as barreiras e se formou em História e Filosofia. A partir dessas formações, argumentava que as narrativas sobre um país “cordial e miscigenado” naturalizavam uma violência secular, tanto física quanto psicológica, perpetuando estereótipos sobre a população negra, especialmente as mulheres. Gonzalez colocava o dedo na ferida do Brasil ao afirmar, sem exagero, que a miscigenação no país não foi um processo harmonioso, mas sim resultado da violência sexual contra mulheres negras escravizadas. Esse processo gerou mitos sobre a mulher negra que persistem até hoje, como os da “mulata” e da “mulher fácil”.
Lélia nos alerta até hoje, a partir dos seus escritos, sobre a necessidade de construir uma interpretação da sociedade a partir da experiência das mulheres negras, sem naturalizar suas vivências. É importante ressaltar que, no Brasil, Gonzalez foi uma das primeiras a abordar a interseccionalidade, apontando que as mulheres negras enfrentam uma tripla discriminação: racial, de gênero e social. Seu trabalho desconstruiu representações essencialistas sobre as mulheres negras, como as noções de “mãe preta” ou “doméstica”, e criticou a falta de representatividade nos movimentos feministas liderados por mulheres brancas de classe média.
Além de sua contribuição acadêmica, Lélia Gonzalez foi uma ativista incansável. Ela participou da fundação do Movimento Negro Unificado (MNU) em 1978, um marco na luta contra o racismo no Brasil, e ajudou a criar espaços para discutir as especificidades das mulheres negras e da comunidade LGBTQIA+. Sua atuação política e intelectual influenciou gerações de pesquisadores e militantes, consolidando-a como uma figura central no pensamento social brasileiro.
Ainda assim, é importante lembrar que a figura e a obra de Lélia Gonzalez não se limitaram a desconstruir estereótipos raciais e de gênero. O que Lélia ofereceu foi uma crítica profunda à formação da identidade brasileira, marcada por desigualdades que vêm de séculos. Esse olhar crítico sobre a identidade nacional encontra ecos na luta dos movimentos populares e camponeses, posto que estes desafiam as desigualdades no campo e reivindicam dignidade para os trabalhadores rurais.
Ao denunciar a naturalização da violência contra as mulheres negras escravizadas, Lélia traz também a violência histórica contra este grupo em esferas rurais. Por isso, pensar a perspectiva de uma identidade negra, indígena e feminina no campo brasileiro coloca o MST na luta por visibilidade das populações despejadas de suas terras e forçadas a viver em condições precárias. A luta por Reforma Agrária no Brasil é também uma reivindicação por reconhecimento de uma identidade brasileira, temas centrais no pensamento de Gonzalez.
A identidade e a cultura do brasileiro
O que chamamos de identidade “Sem Terra” está conectada com a identidade negra brasileira e questiona as estruturas de poder que perpetuam a exclusão dos trabalhadores e da mulher trabalhadora rural e camponesa. Se Gonzalez destacou como o racismo e o sexismo criam hierarquias que marginalizam grupos específicos, o MST reforça como o latifúndio e a concentração de terras reforçam desigualdades históricas, afetando também comunidades negras e indígenas, em que as mulheres e meninas geralmente são o elo mais afetado dessa corrente.
Ambos os movimentos enfrentam narrativas dominantes que tentam invisibilizar suas lutas: Gonzalez desmontou o mito da democracia racial, enquanto o MST desafia a ideia de que o agronegócio é um modelo viável para o campo, principalmente diante das crises climáticas, e nisso evidencia a importância da educação e da conscientização como ferramentas de transformação.
A luta antirracista de Gonzalez e a luta dos Sem Terra revelam as contradições da identidade brasileira, construída sobre a exploração e a exclusão, e apontam para a necessidade de reconhecer e valorizar as histórias e contribuições da base da população brasileira. A real face daqueles que estão no dia a dia, resistindo a um país opressor, racista, sexista e que cada vez mais se aproxima de um modelo predatório.
Outro aspecto dessa identidade está na oposição entre a cultura camponesa, frequentemente associada ao “caipira”, e a cultura dos grandes centros urbanos. Nesse sentido, é fundamental refletir sobre como se construiu a diferenciação do que é considerado “normal” e como esse processo está encoberto por um véu ideológico de branqueamento. Segundo Gonzalez, essa dinâmica é “recalcada por classificações eurocéntricas do tipo ‘cultura popular’, ‘folclore nacional’ etc., que minimizam a importância da contribuição negra”.
Lélia Gonzalez faleceu em 1994, mas seu legado permanece vivo. Suas ideias continuam a inspirar debates sobre racismo, sexismo e desigualdade, e sua trajetória é um exemplo de resistência e compromisso com os brasileiros e com o Brasil que queremos. Ao celebrar os 90 anos de Lélia Gonzalez, reconhecemos seu legado como inspiração para a luta por dignidade, onde a terra, o trabalho e a identidade sejam fontes de liberdade.
*Editado por Solange Engelmann