A crítica arrancou as flores imaginárias da corrente não para que o homem continue a carregar a corrente sem fantasia ou consolo, mas para que ele rejeite a corrente e colha a flor viva.
Karl Marx, Crítica da Filosofia do Direito de Hegel
Há alguns dias, o 15 de março de 1985 foi solenemente registrado, inclusive em segmentos da esquerda, como os 40 anos da redemocratização do Brasil. No caso, está se falando da posse de José Sarney, encerrando os governos militares. Narrar a história tende a ser um ato pomposo, especialmente para aqueles que viveram os fatos e testemunharam seus desdobramentos. Contar uma história vitoriosa, então, é duplamente recompensador, sobretudo quando se trata de um processo marcado por esforços heroicos, enfrentamentos e, em muitos casos, a própria entrega de vidas a uma causa.
No entanto, é essencial que essa narrativa seja submetida a uma crítica rigorosa, sob o risco de se cristalizar como uma versão romantizada e conservadora da história. A comemoração dos 40 anos da chamada “redemocratização” carrega duas falácias fundamentais: a crença de que antes de 1964 vivíamos uma plena democracia e a ideia de que, após a queda da ditadura militar, o Brasil retornou a um sistema verdadeiramente democrático.
Se os que celebram esse marco entendem a democracia liberal como o modelo definitivo de liberdade e representação política, sua perspectiva é coerente. Entretanto – e apesar das conquistas de importantes liberdades democráticas – essa transição não representou uma efetiva mudança de condições para amplas parcelas da população.
A população negra, mulheres, trabalhadores, sem-terra, populações periféricas, adeptas e adeptos das religiões afro-brasileiras e a comunidade LGBT seguem enfrentando exclusão, violência e marginalização estrutural. Dados recentes corroboram essa realidade: os negros representam 75% das vítimas de homicídios no Brasil, a cada 4 minutos uma mulher sofre violência física, e os ataques a terreiros de religiões de matriz africana continuam em crescimento, demonstrando que a liberdade de culto ainda é um privilégio de poucos. O campo, por sua vez, segue marcado por latifúndios, desigualdade fundiária e repressão violenta a movimentos sociais que lutam por reforma agrária.
Comemorar eventos históricos tem um forte componente pedagógico. Mais do que um ritual comemorativo, a celebração de datas marcantes transmite valores e consolida interpretações sobre o passado. Ao difundir a ideia de que vivemos há 40 anos em um modelo democrático que apenas requer ajustes pontuais, estamos, consciente ou inconscientemente, promovendo uma perspectiva conservadora da história.
O discurso da “redemocratização” sugere que alcançamos um patamar político aceitável, bastando-lhe pequenas reformas para sua perenização. No entanto, tal leitura obscurece o papel central das mobilizações populares na queda da ditadura e desconsidera as limitações estruturais da ordem política que emergiu desse processo.
O que devemos celebrar não são “40 anos de redemocratização”, mas sim os 40 anos da derrubada formal do regime militar. A verdadeira lição desse período reside na constatação de que, ao final dos anos 1970, o país se encontrava mergulhado em uma grave crise econômica, resultado de um modelo de desenvolvimento excludente e autoritário.
As grandes greves operárias da década abriram um ciclo de luta que culminou na campanha pelas Diretas Já, impulsionando a desestabilização do regime. Diante da iminente ruína da ditadura, setores da elite burguesa articularam uma saída pactuada, que se consolidou com a chapa Tancredo-Sarney e a subsequente posse de José Sarney, após a morte de Tancredo Neves.
Elevar o colégio eleitoral que garantiu essa transição ao status de fundante da democracia equivale a transformar esse evento em mais um “7 de setembro” – um mito a ser celebrado, mas não problematizado.
Se há algo a ser aprendido com a história, é que as mudanças reais não se operam por concessões de cima para baixo, mas por meio da pressão popular e da organização dos setores oprimidos.
A história não se fecha em um ciclo autocomplacente; ela nos desafia a reescrevê-la continuamente, sob novas perspectivas e, principalmente, com novos protagonistas, no caso concreto, são 40 anos de busca, sim, neste período há conquistas a defender, mas o essencial é que são 40 anos lutando por democracia real.