1º de maio, dia do trabalho ou da mentira?

por Fábio de Oliveira Ribeiro

Quando foi promulgada, a Constituição Federal de 1988 foi um marco importante da modernização das relações do trabalho no Brasil. Digo isso pensando especificamente na melhoria automática que o art. 7º caput produziu em relação ao trabalho rural, cuja situação anterior era realmente desesperadora em razão da desigualdade trabalhista e previdenciária que existia entre trabalhadores rurais e urbanos.

Desde 1940 a legislação criminalizava o trabalho análogo ao de escravo (art. 149, do Código Penal). O art. 1º, I, do Decreto-Lei nº 368, DE 19/12/968, por exemplo, proibia o empregador rural que devia salários aos seus empregados de pagar honorário, gratificação, pro labore ou qualquer outro tipo de retribuição ou retirada a seus diretores, sócios, gerentes ou titulares da firma individual e de distribuir quaisquer lucros, bonificações, dividendos ou interesses a seus sócios, titulares, acionistas, ou membros de órgãos dirigentes, fiscais ou consultivos.

Na prática, entretanto, as instituições toleravam o trabalho análogo à escravidão. E as consequências econômicas em relação aos empregadores preconizadas pelo Decreto-Lei 368/1968 eram inexistentes. Prova inequívoca desse fato foi dada no caso de José Carlos Stein.

Nomeado Delegado Regional do Trabalho em São Paulo, Stein promulgou em outubro de 1985 a Portaria GD nº 05/1985 (vide página 15-16 do link) para, entre outras disposições:

Determinar que a Divisão de Proteção ao Trabalho desta DRT/SP, através da Seção de Proteção ao Trabalho da Mulher e do Menor, somente registre os convênios ou contratos de creche, mediante a cabal comprovação de que a creche convenente possua berçário, com um número de berços ou leitos, capaz de atender às reservas feitas às empresas conveniadas, instituindo para tanto número de matrícula para as creches, devendo constar da mesma o número de berços que possui, averbando-se os contratos que forem celebrados com as empresas e os leitos ou berços reservados a estas, de modo a se verificar a efetiva possibilidade de atendimento, nos termos do que prescreve a Consolidação das Leis do Trabalho em seu artigo 389, § 20, em consonância com o disposto no artigo 20 da Portaria DNSHT/NO 01, de 15-01-1969, com a redação dada pela Portaria DNSHT nº 01, de 06-01-1971, não se procedendo qualquer registro de contrato de creche para os fins objetivados, ao se verificar que creche convenente não dispõe de berços ou leitos em número suficiente para as reservas compromissadas.”.

O intuito dessa Portaria era obrigar as empresas urbanas e rurais de São Paulo a manter creches com instalações adequadas. Stein, que décadas depois foi meu cliente numa reclamação trabalhista movida contra o ex-empregador dele, também passou a reprimir vigorosamente o trabalho análogo à escravidão no interior de São Paulo. Ele chegou a participar pessoalmente de algumas operações de resgate em propriedades rurais em que existiam trabalhadores submetidos à escravidão. Ele rapidamente caiu em desgraça sendo removido do cargo.

Tudo isso é passado, mas não pode ser esquecido. Afinal, na fase atual o país flerta com um novo tipo de trabalho análogo à escravidão.

O caminho para a legitimação do trabalho análogo ao de escravo foi aberto pelo neoliberalismo jurídico que tem influenciado inúmeras decisões proferidas pelo STF. Basta para tanto o empregador utilizar uma interface algorítmica e virtual entre ele e seu escravo e, quando necessário, exibir na Justiça do Trabalho um contrato de adesão cujas cláusulas não puderam ser e não foram realmente rejeitadas pelo trabalhador. Se a empresa for uma multinacional como o UBER, presume-se que o escravo litiga de má fé caso resolva desafiar a lógica da exploração neo-escravocrata no Judiciário.

Em 14/04/2025 Gilmar Mendes proferiu uma decisão teratológica suspendendo todos os processos movidos por trabalhadores pejotizados e uberizados. Ao que parece, aquele Ministro do STF acredita que ninguém deve ter o direito de discutir na Justiça a ilegalidade de um contrato de adesão ou de provar que num caso específico ocorreu uma fraude para impedir a aplicação das normas da CLT.

A distância entre Gilmar Mendes e José Carlos Stein é abissal. O efeito que ambos produziram ou produzirão no circo de horrores trabalhista brasileiro também não poderia ser mais diferente. Aquele ex-Delegado do Trabalho de São Paulo foi removido do cargo em razão de ter ousado aplicar a CLT e desafiar a estrutura de poder escravocrata que existia (e ainda existe) no Brasil. Com sua decisão, Gilmar Mendes reforçou uma versão modernizada dessa mesma estrutura escravocrata.

Importante mencionar aqui outro fato relevante. Nesse momento o mundo conspira para reforçar a tese de Gilmar Mendes e para obscurecer a luta contra o trabalho escravo realizada por José Carlos Stein.

Gilmar Mendes paira sobre a sociedade brasileira como se fosse um rock star do neoliberalismo jurídico. Ele é elogiado pela imprensa e textos contendo o nome dele inundam a internet (2.550.000  resultados fornecidos pelo Google). A memória virtual acerca de José Carlos Stein é praticamente inexistente (8.050 resultados, muitos dos quais associadas a José Carlos Stein Jr.). Existe apenas uma matéria jornalística sobre ele disponível na internet. Quem quiser saber algo sobre o que aquele Delegado do Trabalho fez teria que ir consultar aos arquivos da DRT, do Estadão e da Folha de São Paulo.

O quase total desaparecimento virtual dessa personagem da história recente de São Paulo é um fato confirmado pelo DeepSeek, Perplexity, ChatGPT e Gemini. As IAs nada sabem ou pouco sabem sobre José Carlos Stein porque os dados que dizem respeito a ele não estão presentes em arquivos digitalizados. Arquivos físicos, microfilmados e digitalizados que eventualmente mencionam algo sobre o ex-Delegado do Trabalho que combateu o trabalho escravo e caiu em desgraça por ter feito isso existem, mas eles se tornaram irrelevantes nesse mundo maravilhoso em que as gerações mais jovens vivem e são ensinadas a acreditar que aquilo que uma IA não sabe é irrelevante ou inexistente.

É nesse contexto que a pergunta “1º de maio, dia do trabalho ou da mentira?” se torna muito relevante. O fundamento da decisão proferida por Gilmar Mendes parece verdadeiro, mas ele é uma falácia jurídica uma mentira contada de maneira eloquente. Nem a Constituição Federal, nem a CLT, nem qualquer Convenção ou Acordo Internacional subscrito pelo Brasil diz textualmente que o STF pode proibir quem quer que seja de discutir na Justiça do Trabalho a natureza de sua relação empregatícia.

Todavia, e esse é o ponto principal aqui: IAs que fornecem respostas provavelmente corretas apenas com base nos bancos de dados que consultam, podem dizer que a decisão de Gilmar Mendes é irrepreensível. Reproduzo abaixo as conclusões ofertadas por quatro IAs que analisaram a decisão de Gilmar Mendes que está sendo comentada:

“… a decisão transcrita reflete exatamente o que foi decidido pelo STF: a suspensão nacional dos processos relacionados ao Tema 1.389, fundamentada na necessidade de segurança jurídica e uniformização da jurisprudência, sendo correta do ponto de vista jurídico e processual” Perplexity

“A decisão é juridicamente adequada, legítima e razoável. Ela atende aos princípios da segurança jurídica, da eficiência e do respeito à autoridade das decisões do STF.” ChatGPT

“… considerando as informações fornecidas no texto, a decisão de suspender o processamento das ações relacionadas ao Tema 1.389 da repercussão geral aparenta ser correta e bem fundamentada.” Gemini

Apenas o DeepSeek questionou os fundamentos dessa decisão:

“A decisão é juridicamente fundamentada e busca evitar insegurança jurídica e sobrecarga processual. No entanto, sua legitimidade depende de uma avaliação mais ampla sobre:

  • Se a suspensão é proporcional ou se há meios menos drásticos para resolver o problema.
  • Se a Justiça do Trabalho está, de fato, agindo de forma sistemática contra a orientação do STF ou se há margem para interpretação divergente.

Se comprovado o descumprimento reiterado das decisões do STF, a medida é correta e necessária. Caso contrário, pode ser vista como uma interferência excessiva.”

Na esfera trabalhista o princípio “pacta sunt servanda” do direito comum não é e nunca será automaticamente aplicável. E mesmo que fosse, os contratos sobre os quais esse princípio incide também podem ser considerados nulos ou anuláveis em caso de erro ou ignorância, coação, fraude, simulação, incapacidade do agente, ilicitude do objeto, etc. A presunção de validade de um contrato de pejotização ou uberização não é e não pode ser absoluta e/ou irrevogável como Gilmar Mendes e três IAs querem nos fazer acreditar.

Mas nada disso significa que o 1º de maio não possa ser uma mentira. Afinal, num contexto dominado pelo neoliberalismo algoritmizado a Constituição, a História, as festas populares e datas importantes podem ser esvaziadas e redefinidas. À medida que essa redefinição se tornar mais e mais compartilhada na internet maior será a probabilidade dela ser considerada verdadeira por máquinas virtuais que vomitam respostas aparentemente plausíveis que já tornaram José Carlos Stein invisível.

Num mundo diferente, em que as normas legais realmente têm validade e eficácia, o Decreto-Lei 368/1968 poderia ser invocado pelo PGR ou por qualquer membro do MPT para impedir a UBER de pagar honorário, gratificação, pro labore ou qualquer outro tipo de retribuição ou retirada a seus diretores, sócios, gerentes ou titulares da firma individual e de distribuir quaisquer lucros, bonificações, dividendos ou interesses a seus sócios, titulares, acionistas, ou membros de órgãos dirigentes, fiscais ou consultivos enquanto a empresa submeter seus empregados a contratos de pejotização e uberização que instrumentalizam o trabalho análogo ao de escravo? Essa é uma pergunta apenas retórica que ninguém mais parece ser capaz de fazer. E é justamente por isso que o dia do trabalho já pode ter virado o dia da mentira.

Fábio de Oliveira Ribeiro, 22/11/1964, advogado desde 1990. Inimigo do fascismo e do fundamentalismo religioso. Defensor das causas perdidas. Estudioso incansável de tudo aquilo que nos transforma em seres realmente humanos.

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Last Update: 01/05/2025