Breve história, os manicômios brasileiros
Na maior parte do século XX, a assistência popular em casos de sofrimento mental, ocorreu na modalidade de manicômios ou hospícios, locais para internações de longa duração.
Veiculava-se o discurso de que o louco por si só é violento, que poderia a qualquer momento agredir pessoas em seu entorno, e que por isso deveria ficar separado da sua família e da comunidade, neste lugar “apropriado” para sua condição. Outro discurso veiculado era, pessoas com problemas mentais precisavam ser tratadas de maneira especial e num lugar especializado. Assim, em nome de um bem maior, ao longo do século XX, seguramente centenas de milhares foram internados em manicômios e hospícios no Brasil. Talvez mais, pois não havia registros regulares.
Sempre o recorte de classe, pois quem podia pagar por hospitais caros, embora ainda com tratamentos questionáveis, não precisava levar seu familiar para um recinto geralmente distante e inacessível, sendo obrigado a se contentar com o que fosse informado pela instituição.
Estima se que somente no Hospital Colônia de Barbacena/MG, expoente dos manicômios no Brasil, tenham morrido 60 mil pessoas. O hospital ficava na última estação de trem, por onde chegavam as pessoas em vagões lotados. As pessoas internadas ficavam abandonadas nos pátios dos manicômios, sem nenhum tipo de assistência de verdade. As refeições eram ofertadas coletivamente, despejadas em mesas de alvenaria. Vigilância constante, completa privação de liberdade e autonomia, tratamentos violentos, castigos físicos, condições insalubres, falta de alimentação adequada, e até falta de vestimentas com óbitos por hipotermia. Gestantes se cobriam com fezes para proteger seus bebês, afim de evitar agressões de outros internos ou funcionários. A eletro convulso terapia era feita em série, preparando um a um na sequência de macas no mesmo espaço, com os próximos presenciando as convulsões de seus antecessores.
Os proprietários dos manicômios lucravam fartamente recebendo dinheiro público, sem qualquer contrapartida, sem qualquer investigação da destinação do recurso. A lucratividade era máxima, até os cadáveres eram vendidos para faculdades de medicina do país para aulas de anatomia, inclusive negociados por vezes em lotes. Quando a demanda era baixa, os corpos eram deixados em tambores com ácidos, afim de vender posteriormente os esqueletos, prática feita no pátio na presença dos outros internos
Uma luta dos trabalhadores
Nos anos 70, começam a ocorrer várias denúncias de como eram realmente as condições dos manicômios. Estas denúncias partiram primeiramente dos próprios trabalhadores. Houve um episódio conhecido como crise da DINSAM (Divisão Nacional de Saúde Mental), do Ministério da Saúde. Em 1978 os trabalhadores fizeram uma carta com denúncias das condições inumanas, e reivindicavam melhorias na assistência para os internados. O Ministério da Saúde respondeu com 260 demissões, o que gerou novas denúncias e protestos, com ainda maiores repercussões.
A Luta Antimanicomial cresceu recebendo adesão de familiares, vítimas e expressão midiática num momento que se denunciavam também, a violência da ditadura. Surge o MTSM, Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental. Criando assim também a categoria coletiva de trabalhador da saúde mental, que envolvia todas as categorias profissionais que atuavam na área, independente da função ou formação.
A OMS recomenda o dia 10 de outubro como Dia Mundial da Saúde Mental, mas por movimentos populares no Brasil temos nossa própria data. Em 18 de maio de 1987, em Bauru/SP, acontece um importante encontro desse movimento, em que é redigido o Manifesto de Bauru, que consolida as reivindicações da luta antimanicomial brasileira.
Segue o Manifesto de Bauru:
Um desafio radicalmente novo se coloca agora para o Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental. Ao ocuparmos as ruas de Bauru, na primeira manifestação pública organizada no Brasil pela extinção dos manicômios, os 350 trabalhadores de saúde mental presentes ao II Congresso Nacional dão um passo adiante na história do Movimento, marcando um novo momento na luta contra a exclusão e a discriminação.
Nossa atitude marca uma ruptura. Ao recusarmos o papel de agente da exclusão e da violência institucionalizadas, que desrespeitam os mínimos direitos da pessoa humana, inauguramos um novo compromisso. Temos claro que não basta racionalizar e modernizar os serviços nos quais trabalhamos.
O Estado que gerencia tais serviços é o mesmo que impõe e sustenta os mecanismos de exploração e de produção social da loucura e da violência. O compromisso estabelecido pela luta antimanicomial impõe uma aliança com o movimento popular e a classe trabalhadora organizada.
O manicômio é expressão de uma estrutura, presente nos diversos mecanismos de opressão desse tipo de sociedade. A opressão nas fábricas, nas instituições de adolescentes, nos cárceres, a discriminação contra negros, homossexuais, índios, mulheres. Lutar pelos direitos de cidadania dos doentes mentais significa incorporar-se à luta de todos os trabalhadores por seus direitos mínimos à saúde, justiça e melhores condições de vida.
Organizado em vários estados, o Movimento caminha agora para uma articulação nacional. Tal articulação buscará dar conta da Organização dos Trabalhadores em Saúde Mental, aliados efetiva e sistematicamente ao movimento popular e sindical.
Contra a mercantilização da doença!
Contra a mercantilização da doença; contra uma reforma sanitária privatizante e autoritária; por uma reforma sanitária democrática e popular; pela reforma agrária e urbana; pela organização livre e independente dos trabalhadores; pelo direito à sindicalização dos serviços públicos; pelo Dia Nacional de Luta Antimanicomial em 1988!
Por uma sociedade sem manicômios!
Bauru, dezembro de 1987 – II Congresso Nacional de Trabalhadores em Saúde Mental.
Um problema para toda a classe operária
Para a classe operária como um todo, há um enorme problema, independentemente de qualquer sofrimento psíquico próprio ou de familiar, que é a legitimação do lugar para os excluídos ou improdutivos. Estima se que apenas 30% dos internos de Barbacena tinham de fato um diagnóstico de doença mental. Moças que perderam a virgindade antes do casamento, homossexuais, militantes políticos, bastardos, usuários de drogas, amantes de políticos, mendigos errantes, qualquer pessoa indesejada ou em desavença com poderosos, poderia parar num manicômio.
Além da própria internação, os vitimados por interesses políticos burgueses, se saíssem, estariam marcados como loucos. Ou seja, pessoas “fora da realidade”, e cujas denúncias não se deviam considerar seriamente.
A revolução industrial e a concentração da população em meios urbanos cria maior possibilidade de associação entre os trabalhadores, novas formas de controle das massas são produzidas em aparatos diversificados para este fim. Um dos principais métodos de repressão em nome do bem é a imaculada autoridade médica.
A medicina se torna necessária, se apresenta como isenta da luta de classes em sua essência, como um avanço universal da humanidade, obviamente nunca na prática. Mas que especialmente seria detentora de um saber quase sagrado, do qual o trabalhador não possuiria nenhum acesso, e que muito superaria qualitativamente o saber popular existente, restando ao proletariado obedecer e agradecer qualquer assistência recebida. Entre as especialidades médicas desenvolvidas, a psiquiatria é uma das que mais têm condições de exercer poder. E seguramente a vertente mais cruel ainda hoje.
O desenvolvimento técnico científico psiquiátrico, sempre foi acompanhado passo a passo por atualizações das formas de controle. Sejam com camisa de força e manicômios, ou as formas mais recentes, comunidades terapêuticas, e medicalização/patologização da vida cotidiana. Quando com muita luta e ao preço de muito sofrimento, o discurso psiquiátrico vigente é desmascarado, logo se financiam uma corrida para atualizações dos métodos e discursos, para que sejam aceitas novas formas de opressão, camufladas com os novos avanços científicos reais desenvolvidos.
Os trabalhos de referências do campo da saúde mental, que ousaram separar o desenvolvimento verdadeiramente científico, do exercício de poder, sofreram perseguições como foi o caso de Nise da Silveira no Brasil. Intervenções nas pesquisas, falsificações e censuras de suas teorias. Enquanto a lobotomia rápida e lucrativa com um picador de gelo, recebeu o prêmio Nobel. Nunca a psiquiatria foi utilizada pelos estados burgueses apenas para fins medicinais.
A Luta Antimanicomial hoje!
Houve períodos de avanço regional da Luta Antimanicomial no país na década de 90, e que se tornou mais abrangente nos anos 2000. Muitos manicômios foram fechados, e criada a chamada rede substitutiva, com serviços qualificados para a população. Nunca implantados totalmente, mas com excelentes resultados em várias regiões do país.
Mas a última década foi de um selvagem retrocesso. Embora houvesse uma expectativa que com a volta do governo do PT, haveria um giro da política de saúde mental no país, ocorreu o oposto, um aprofundamento do retrocesso da Luta Antimanicomial iniciado no governo Dilma Roussef.
É um movimento social que encontra resistência em todo espectro político institucional atual. Particularmente vergonhoso para a esquerda pequeno burguesa, tão autoritária e moralista com as pautas em defesa da população mais vulnerável, mas que escolhe a dedo quais nichos quer defender.
O neoliberalismo torna a assistência da população pura mercadoria. A patologização da vida comum gera catálogos pseudo científicos de doenças psíquicas nunca antes vistas. Os grandes monopólios farmacêuticos e planos de saúde participam financiando falsificações conceituais e lucram fartamente com os tratamentos para tais males.
As Comunidades Terapêuticas são as versões modernas dos manicômios, com sequestros, assassinatos e todo tipo de violência. Essas Comunidades são diretamente ligadas a parlamentares da direita, um financiamento da própria oposição ao governo. Servem como um cheque em branco, enquanto faltam recursos no SUS.
O adoecimento mental é causado principalmente pela exploração sem limites, perda de direitos básicos e ausência de estabilidade financeira social. O trabalhador por mais que se esforce, se dá conta que a venda de sua força de trabalho não é suficiente para a dignidade de sua família, que qualquer inventividade que tenha será tomada e apropriada pelas corporações sem lhe dar o mérito, que vive num país cujo sistema está contra ele.
A Luta Antimanicomial sem luta de classe não terá resultado, que não um reformismo temporário à duras penas. E os comunistas precisam se inteirar da Luta Antimanicomial, como uma importante frente, inclusive para que não sejam pegos por suas modernas armadilhas. Cabe aos trabalhadores exigir atendimento de saúde com qualidade, verdadeiramente científico e humano para todos que necessitam. Denunciar que a opressão do capitalismo é a maior fonte de adoecimento da população, que deve ser combatido com informação, organização e mobilização.